O brasileiro Sócrates
A ideia de que quem
acusa tem mais direitos do que quem defende é típica de ordenamentos tingidos
de medievalidade.
Os longínquos
consulados de Sócrates estão meio esquecidos e já ninguém é capaz de contar com
um mínimo de consistência os detalhes de qualquer das várias aldrabices que foi
inventando para justificar os meios de fortuna que detinha.
Mas não é só o tempo
decorrido que explica a amnésia, é também o incómodo: muito antes das
tranquibérnias da personagem terem caído no domínio público já havia denúncias
em recantos obscuros da blogosfera, como havia no mesmo lugar uma consistente
patrulha que defendia com unhas e dentes a personagem. Os soldados desta
patrulha tiveram, em muitos casos, o destino exaltante de boas carreiras no ou
à sombra do poder político, e não querem ser lembrados das suas antigas fidelidades.
Como aliás acontece com boa parte do aparelho dirigente do PS, a começar pelo
estadista Costa, que nunca foi prejudicado pela sua pouco verosímil cegueira.
Estranho caso: a massa
do eleitorado, que foi enganada, guarda a sua aversão para o detestado Sócrates
que, coitado, sempre foi bastante transparente no seu perfil de troca-tintas
contumaz; mas não apenas não aprendeu nada com as patranhas que engoliu como
elegeu e reelegeu um demagogo da mesma extração (descontando porventura a
desonestidade pessoal que, para efeito do acerto de políticas, não tem grande
relevo). Sócrates fez o país falir porque as instituições europeias ainda não
tinham decidido que os países da UE não podem falir. Com Costa apenas não faliu
porque, desde que haja um módico de respeito pelo manual de instruções, o BCE
passou a aparar o jogo.
E não só eleições para
a AR, isto é, para o Governo: Marcelo deu abundantes provas de ser uma irrelevância
palavrosa, espécie de rei constitucional socialista sem poder moderador e sem
decoro. E o eleitorado disse, reguila: Aí sim, não serves para nada? Toma lá
uma maioria reforçada.
Os dois partidos que
entre si rotativizaram o regime cuidaram de criar uma massa de dependentes do
Estado avessa a reformismos que pareçam pôr em perigo, sequer remotamente, a
principal conquista do 25 de Abril: o Estado cuidador, omnipresente, dono do
SNS e dos avisos nos maços de tabaco e das mudanças de tempo, empregador
pobreta mas seguro, garante das pensões de reforma e da modernidade trombeteada
por uma comunicação social abjectamente servil. Esta massa é o garante da
democracia e do deslizar permanente do país para os últimos lugares do
desenvolvimento na União. Ademais, a incapacidade reformadora tem contado com a
inoperância do parceiro mais débil do situacionismo, liderado até há pouco por
um homem sério com perfil de excelente gestor de minimercado.
Este, o situacionismo,
está tão firmemente estabelecido que há até partidos que não servem para governar,
mas servem de canários na mina: qualquer esboço de mexidas no status quo e
eles encarregam-se de pôr os jornais, e o país, em polvorosa. São como os
sindicatos no mundo do trabalho: um bando de comunas, Deus nos livre de os
escolher seja para o que for – salvo para existirem e fazerem um berreiro do
demónio se um governante chanfrado se lembrasse, sei lá, por exemplo, de pôr um
serviço deficiente a funcionar.
Lá democracia temos:
imperfeita como todas, mas quem quer diz o que quer, os partidos fazem o que
entendem e as instituições do Estado de Direito (com exceção do Fisco, por
razões de que aqui não curo) funcionam regularmente.
Portanto, o que temos é
o que o Povo quer que tenhamos. E que se danem todos os melhores espíritos que,
entre nós e tradicionalmente, assacam às elites a responsabilidade pelo atraso
relativo que nos pesa, e que perdura. Destes, o último foi Rentes de
Carvalho, numa encantadora
entrevista que concedeu e que apenas perdeu por curta – a gente
ficava, com proveito e gosto, a ouvi-lo muito mais tempo.
Eu aos melhores
espíritos não pertenço, reconheço. E esta lamentável inferioridade leva a que
entenda que não há em Portugal praticamente nenhuma reforma desejável que possa
ser feita com a concordância da população, mesmo em sectores que, como a
Justiça, todos – profissionais, teóricos, utilizadores – entendem que funcionam
muito mal.
Daí que, ao fim de
quase oito anos, Sócrates ainda não tenha sido julgado e os juízes se queixem
de excesso de garantismo como se não fosse o arrastar de pés no lavrar de
sentenças, e o seu bordar vaidoso de textos prolixos redigidos no paleio
obscuro que imaginam ático, que justifica os incompreensíveis atrasos nas
sucessivas decisões face a sucessivos recursos; os magistrados do Ministério
Público se distingam por perseguir todos os coelhos, e atirar a todos os
ninhos, sem jamais acertarem em coisa alguma; os advogados forneçam o grosso do
trabalho legislativo que incansavelmente remenda uns rasgões no universo
judiciário, abrindo outros; a comunicação social estadeie a sua insondável
ignorância das matérias e o seu desespero por não vislumbrar qualquer solução;
os sindicatos de magistrados (cuja existência, aliás, não deveria sequer ser
permitida) confundam inevitavelmente a defesa da Justiça com a defesa de
interesses corporativos; e a opinião pública continue desnorteada por o assunto
caber mal na dicotomia rico/pobre, que está habituada a achar que é o que está
na origem de todas as disfunções e todas as injustiças.
Justiça irreformável,
portanto. O que não é a mesma coisa que achar que quem acusa tenha todos os
direitos, e quem se defende todas as obrigações, por muito que a opinião
pública ranja os dentes por eles (eles são os poderosos) andarem aí,
aparentemente, na boa vai ela.
Sucede que o mesmo
ministério público que não cessa de dar provas de inoperância entende que
tem uma espécie de direito de tutela permanente sobre a vida dos acusados, por
o serem, e isto sem dependência de quaisquer prazos razoáveis. Desta vez (uma
evolução positiva, sabemos o nome do magistrado, Vítor Pinto) acha que Sócrates
não lhe pediu licença, mas devia ter pedido, para ir fazer um doutoramento ao
Brasil (incidentalmente uma maneira de redourar uma carreira política com a
companhia de outro político infrequentável, o que no caso é inteiramente
irrelevante).
Entendamo-nos: o único
risco que legitima este droit de regard do MP é o de fuga. Sucede,
porém, que a crença de que este expediente limita esse risco é apenas isso, uma
crença, e ingénua na hipótese de não ser apenas inane.
Não é provavelmente
disso que se trata, mas ostensivamente da majestade da Justiça, que no caso o
magistrado confunde com o prestígio da instituição que serve, que julga
ofendido se em todos os momentos os acusados, ou investigados, ou inquiridos,
não prestarem aquela vassalagem que imagina devida.
Imagina mal: a ideia de
que quem acusa tem mais direitos do que quem defende é típica de ordenamentos
tingidos de medievalidade. E não menos se, no caso, é provável que a opinião
pública esteja calorosamente do lado do magistrado, do mesmo modo e pelas
mesmas razões que sempre achou e acha que a presunção de inocência é
absolutamente respeitável na teoria, e absolutamente desprezível na prática.
Repito, mais uma vez:
Sócrates é um exemplo lamentável de político e pessoa, mas a forma como é
tratado deve-nos fazer pensar: se se trata assim um ex-PM que já foi um menino
dourado da opinião pública e do establishment, como não se tratará um
pobre diabo que ninguém conhece?
Sócrates é manipulador
e explora até ao infinito todos os recursos do dinheiro e do Direito. Isto é,
faz o que seria de esperar. Agora vai-se embrulhar numa retórica infinita em
torno de um não-assunto, sendo submetido a interrogatórios para apurar coisa
nenhuma. Isto porque, aparentemente, as magistraturas envolvidas são incapazes
de perceber que o tempo investido a perder tempo com formalismos faz falta para
tratar da substância.
Os pontos de vistas
expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser
subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não
reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados.
Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o
mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores
convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.

Sem comentários:
Enviar um comentário