No verão de 1975 pairava sobre Portugal um clima de tensão latente. A alegria e a festa da Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, há muito que haviam passado. As greves e manifestações multiplicavam-se; mas, muito mais grave que isso, as relações entre as pessoas complicavam-se.
Ser "socialista" (simpatizante do Partido Socialista) era, para
largas faixas da população, sinónimo de reacionário; e até os simpatizantes do
Partido Comunista eram denominados, por um pequeno, mas aguerrido e
ativo partido, o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), de
"sociais-fascistas".
No jornal República, símbolo da resistência
republicana e socialista durante quase todo o período do Estado Novo,
aos governos de Salazar e de Marcello Caetano - um grupo de
trabalhadores da extrema-esquerda expulsa, a 19 de maio, a Direção, encabeçada
por um antigo e respeitado antifascista, Raul Rêgo. Processos semelhantes se
tinham verificado nos jornais O
Século e Diário de Notícias (embora nestes jornais
a nova redação seja afeta ao PCP). Até o Expresso, propriedade de Francisco Pinto Balsemão, inseria com
regularidade artigos favoráveis ao MRPP; a Direção da Rádio Renascença
(propriedade da Igreja Católica) havia sido expulsa em maio por um grupo de
trabalhadores da própria empresa.
Todo o verão de 75 é caracterizado pelos ataques às sedes dos
partidos políticos, especialmente do PCP (Partido Comunista
Português), que vê várias das suas sedes no Norte do país saqueadas e
queimadas. O espetro da divisão do país entre Norte e Sul e entre os
Açores (muito ligados, pela emigração, aos Estados Unidos da América) e o continente está
presente. A linha de divisão entre o Portugal tradicional
e o esquerdista passaria por Rio Maior,
onde são organizadas barricadas e cortes da estrada nacional n.º 1 Lisboa-Porto
(nesse tempo a autoestrada Lisboa - Porto ia
pouco além de Vila Franca de Xira).
Os medos dos setores mais à direita e ao centro da sociedade
portuguesa centravam-se nas nacionalizações das principais indústrias,
iniciadas a partir do "golpe" falhado de 11 de março, bem como nas
ocupações de edifícios de habitação e de grandes propriedades agrícolas, isto a
par de um certo clima de anarquia que se vivia, com greves nas quais os
trabalhadores de determinada empresa "exigiam", além de
reivindicações económicas, a substituição (o "saneamento") dos
responsáveis e gerentes da sua empresa, em manifestações quase diárias; para os
setores da esquerda moderada a questão da "unicidade" sindical (isto
é, a defesa, por parte do PCP, de que deveria existir uma e só uma central
sindical), as ocupações dos órgãos de comunicação social, os
"saneamentos" de numerosos professores da Universidade e a substituição
dos cursos por preleções políticas, sendo os alunos passados sem exame mas sim
por "passagens administrativas", isto sem falar da postura dos
movimentos feministas que, numa manifestação no Parque Eduardo VII, deitaram ao
lixo tachos, panelas e soutiens - símbolos da antiga forma como eram vistas as
mulheres.
Especialmente significativo era aquilo que a 5.ª Divisão do
Estado-Maior das Forças Armadas defendia no "Boletim Oficial do Movimento
das Forças Armadas": "Queremos o socialismo, sim... mas não o da
Suécia, da Noruega ou da Holanda... o socialismo que queremos é o da República
Democrática Alemã, da Polónia, da Bulgária, da Roménia ..." (sic).
A nível da sociedade civil, para além das reações mais ou
menos espontâneas, e que se traduziram nos citados assaltos a sedes de partidos
políticos (é possível que tenham sido organizados mas não existem elementos
concretos para o afirmar), a reação política propriamente dita foi encabeçada
pelo Partido Socialista, sob a orientação de Mário Soares.
Esta postura valeu-lhe ser expulso da tribuna de honra nas comemorações
oficiais, em Lisboa, do Dia do Trabalhador (1.º de maio).
A 10 de julho o Partido Socialista abandona o Governo (presidido
por Vasco Gonçalves, um apoiante das posições do
Partido Comunista). A 19 de julho o Partido Socialista promove uma gigantesca
manifestação na Alameda da Fonte Luminosa, a qual prenunciava já a viragem
política do regime.
Diante dessa
situação começaram a organizar-se movimentos e fações: um grupo de militares,
chefiados pelo major Melo Antunes, e no qual participavam outros nomes da
Revolução de abril, como Vítor Alves, Vasco Lourenço,
etc., elaborou um comunicado, o "Documento dos 9" (8 de agosto), no
qual afirmava que a situação tinha de mudar; a posição do primeiro-ministro,
coronel Vasco Gonçalves, é posta em causa e este,
perdendo o apoio dos representantes do exército na Assembleia do MFA, é
obrigado a demitir-se, sendo substituído a 18 de setembro pelo almirante Pinheiro de Azevedo, de uma linha política
muito mais moderada.
O Partido Socialista e o Partido Popular Democrático faziam
parte, juntamente com o Partido Comunista, deste Governo. Pinheiro de Azevedo, entretanto, não tinha
força militar para impor as suas ideias, pelo que a agitação continuou. O poder
militar, pelo menos em Lisboa,
estava nas mãos do COPCON (Comando Operacional do Continente), chefiado pelo
então brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho. Em finais de outubro
e princípios de novembro verificaram-se em Lisboa e
no Porto manifestações dos SUV (Soldados
Unidos Vencerão), nas quais participaram milhares de soldados rasos fardados.
Para que se possa avaliar o estado a que a situação tinha
chegado refira-se o seguinte: pretendendo o Governo repor
a legalidade na Rádio Renascença (que, como vimos havia
sido ocupada) e não tendo forças militares em que pudesse confiar, criou em
outubro um grupo especial de 60 homens, a AMI.
Mas, não tendo esse grupo poder suficiente para ocupar, e manter a ocupação, da Rádio Renascença, optou por um comportamento
"terrorista" - dinamitar a antena emissora dessa Rádio -, o que fez a
7 de novembro. Entretanto o grupo que dirigia a Rádio Renascença adquiriu novo cristal na Alemanha e
poucos dias depois as emissões recomeçavam.
Aproximava-se assim a hora da verdade: Otelo Saraiva de Carvalho, com o seu reduzido
grupo de fiéis, e chefiando o COPCON, sentindo o poder escapar-se-lhe,
distribuiu alguns milhares de espingardas metralhadoras G-3 a grupos
esquerdistas; a "direita militar", chefiada por Ramalho Eanes e Jaime
Neves (comandante do Regimento dos Comandos na Amadora), preparava um
contra-golpe.
O cerco à Assembleia da República, levado a efeito pelos
operários da construção civil, em greve, a 12 de novembro, durante o qual os
deputados estiveram impedidos de sair do edifício durante várias horas,
acabando por o abandonar entre filas de manifestantes que os apupavam, exceto
aos deputados do Partido Comunista, e isto debaixo dos olhos do COPCON -
apressou o desfecho.
Pressionado, o Conselho da Revolução determina a
substituição de vários comandantes militares e a dissolução da Base-Escola de
Paraquedistas de Tancos - da qual os soldados e sargentos haviam expulso todos
os oficiais. A reação das esquerdas militares - ocupação de algumas bases
aéreas enquanto o RALIS na Pontinha controlava os acessos a Lisboa -
foi fraca. O Regimento de Comandos, seguindo um plano previamente traçado,
ataca o Quartel da Pontinha - no qual os soldados haviam feito alguns dias
antes (21 de novembro) juramento de bandeira de punho fechado, em saudação
comunista, prometendo defender o socialismo - e o da Polícia Militar, na
Calçada da Ajuda.
Foi de dois o número de mortos (na Polícia Militar). O COPCON,
no Alto de Monsanto, era sobrevoado por aviões com intuitos intimidatórios, assim
como Setúbal e o Barreiro,
tidos como "bastiões" das "esquerdas".
Felizmente, as armas distribuídas aos civis não chegaram a sair dos caixotes e
as restantes unidades militares não se movimentaram; um dos mentores do golpe
tinha mentalidade claramente democrática (Ramalho Eanes); o presidente da
República na altura (general Costa Gomes), embora de simpatias esquerdistas,
apoiou politicamente o golpe (mais tarde, em entrevista, viria a afirmar ter
evitado várias vezes a guerra civil); o pai ideológico da revolução, o major
Melo Antunes, apelou à calma, dizendo que o Partido Comunista era indispensável
à democracia; e desta forma a finalização do período revolucionário teve lugar
de forma pacífica e não revanchista.
Otelo Saraiva de Carvalho viria a ser preso mais tarde, juntamente com outros militares, mas essas prisões não teriam carácter de vingança em grande escala.
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