Portugal visto por Lobo Antunes
Um escritor, um retrato demolidor da " Nação valente e imortal".
Agora sol na rua a fim de me melhorar a disposição, me reconciliar com a
vida.
Passa uma senhora de saco de compras: não estamos assim tão mal, ainda compramos
coisas, que injusto tanta queixa, tanto lamento. Isto é internacional, meu
caro, internacional e nós, estúpidos, culpamos logo os governos. Quem nos dá
este solzinho, quem é? E de graça. Eles a trabalharem para nós, a trabalharem,
a trabalharem e a gente, mal agradecidos, protestamos. Deixam de ser ministros
e a sua vida um horror, suportado em estóico silêncio. Veja-se, por exemplo, o
senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor Jorge Coelho, coitados. Não há
um único que não esteja na franja da miséria. Um único. Mais aqueles rapazes
generosos, que, não sendo ministros, deram o litro pelo País e só por orgulho
não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da
bondade as vezes é hereditário, dúzias deles. Tenham o sentido da realidade,
portugueses, sejam gratos, sejam honestos, reconheçam o que eles sofreram, o
que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos, que pecado feio, a ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres. O senhor
Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros. E nós, por pura maldade,
teimamos em não entender. Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os
islandeses, por exemplo, que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal. Pelo
menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto,
com especial ternura, na amplidão imensa do Seu seio. Já o estou a ver:
- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer por
esses Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados,
banqueiros, coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais
penitentes de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do
Evangelho. E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia
miúda no coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores,
aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade. As empresas
fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem, penhoram casas,
automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade
purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios,
subsídios de cacaracá?
Talvez. Mas passaremos sem dificuldade o buraco da agulha enquanto os
Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma Eternidade feliz. A
transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua frente. Dá-me
vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as correias dos
sapatos. Vale e Azevedo para os Jerónimos, já! Loureiro para o Panteão já! Jorge
Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já! Sócrates para a Torre de Belém, já! A
Torre de Belém não, que é tão feia. Para a Batalha. Fora com o Soldado
Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de pacotilha com que os livros
de História nos enganaram. Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando
Vara. Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito. Estátuas
equestres para todos, veneração nacional. Esta mania tacanha de perseguir o
senhor Oliveira e Costa: libertem-no. Esta pouca vergonha contra os poucos que
estão presos, os quase nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e
Azevedo, como provou o senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com
fins inconfessáveis. Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho
de Estado, de onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair. Quero o senhor
Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás, era um pateta. Quero
outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal, esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos. Acabem com as manifestações, as
greves, os protestos, por favor deixem de pecar.
Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde. E tereis
mais fominha e, em consequência, mais Paraíso. Agradeçam este solzinho.
Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.
Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a aumentar o peito: onde é que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em tenebrosas máscaras de Carnaval. Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha, e vocês cartazes, cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem livros? Mentira. O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender o nível da nossa cultura ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa.
Que queremos? Temos peitos, lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros
a tomarem conta disto. Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode
aspirar? O resto são coisas insignificantes: desemprego, preços a dispararem, não
haver com que pagar ao médico e à farmácia, ninharias. Como é que ainda sobram
criaturas com a desfaçatez de protestarem? Da mesma forma que os processos
importantes em tribunal a indignação há-de, fatalmente, de prescrever. E,
magrinhos, magrinhos mas com peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com
os bifes das bocas seremos, como é nossa obrigação, felizes.
(crónica satírica de António Lobo Antunes, in Visão Abril 2012)
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