OPINIÃO
Último texto
Amanhã vou trepar pelas paredes por
causa do que esqueci. Muito obrigada a quem fez este jornal.
1. Este será o último texto que escrevo aqui. Põe fim a 20 anos e quero
agradecê-los. O PÚBLICO foi um grande jornal do mundo graças a milhares de
pessoas. Que bom ter feito parte dessa aventura.
2. Entrei para os quadros deste jornal em Março de 1998. Antes, escrevera
nele por um ano, paga à peça, entre 1990 e 1991. A soma dos meus 20 anos
remonta, pois, ao arranque do PÚBLICO. Como centenas de jovens de todo o país,
tentei entrar para o primeiro grupo de estagiários quando o projecto foi
anunciado. Já era jornalista com carteira mas ainda não terminara o curso
(Comunicação, na FCSH da Nova). Quem estava a norte fez a prova no Porto. Quem
estava a sul, como eu, fez em Lisboa. Lembro-me de uma plateia de cabeças no
Fórum Picoas, num sábado de manhã, por certo demasiado cedo. Era 1989, eu tinha
21 anos, fazia noites na rádio, ainda havia estações piratas, escrevíamos à
mão. Tempos antes, a TSF abrira candidaturas e as inscrições tinham de ser
manuscritas. Chumbei logo nessa etapa (nunca soube o que revela a minha letra).
E voltei a chumbar na prova do PÚBLICO: não me chamaram para o grupo dos que
iam ser treinados por jornalistas lendários, como Adelino Gomes. Mas recebi uma
carta a dizer que poderia propôr textos quando o jornal chegasse às bancas.
Agarrei-me a isso, começando pelo Local, editado por Francisco Neves, onde
muito aprendi. Ia saltando de secretária consoante quem folgasse. Até que a
Paula Torres de Carvalho entrou em licença de parto e por uns meses
atribuíram-me o lugar dela na Sociedade. Aquilo era um antro de craques da
escrita, desde Rui Cardoso Martins (saído da faculdade) aos veteranos José
Amaro Dionísio (poeta que eu lia) ou Rogério Rodrigues (pai de um Tiago então
com 13 anos que hoje está no Rossio). O ciclone Vicente Jorge Silva soprava de
uma ponta a outra na Quinta do Lambert. Escrevíamos em ecrãs a preto e branco.
Os computadores eram umas caixinhas com uma ranhura para as disquetes. As
disquetes serviam para transportar textos. As notícias chegavam à sala dos
telexes, que jorravam rolos de papel com furinhos. A palavra Internet estava no
ovo do futuro. Quando precisávamos de comunicar com o estrangeiro, íamos às
máquinas enviar um fax, ou falávamos uma fortuna no telefone fixo. Os primeiros
telemóveis de que me lembro são do ano seguinte, uns tijolos que as rádios
usavam. Porque, em Março de 1991, quando Francisco Sena Santos se mudou da TSF
para as manhãs da Antena 1, fui integrar a equipa dele, com salário fixo.
3. Mas fiz uma perninha no PÚBLICO logo depois, em Agosto, no golpe que
levou ao fim da URSS. Eu estava de férias em Moscovo e a rádio ficara com o
número de telefone da família que me alojava. Às cinco da manhã, Sena Sentos
acordou-me a dizer que Gorbatchov fora sequestrado. Passei a enviada especial
da rádio nesse momento. E, como era Agosto, e o correspondente do PÚBLICO, José
Milhazes, estava de férias em Portugal, comecei a escrever para o jornal
também, até Teresa de Sousa chegar, dias depois. Foi a minha primeira
reportagem internacional, sem gravador, computador ou telemóvel. Entrava em
directo por aquele telefone fixo do tempo de Brejnev, sendo que aquilo ainda
era a URSS. Não podia ligar directamente para o estrangeiro, tinha de agendar
com a telefonista. E, para o jornal, escrevia à mão e ditava.
4. Passaram sete anos. Vicente Jorge Silva e Jorge Wemans deixaram o
PÚBLICO. O começo de 1998 foi uma fase de transição no jornal, gente a sair, a
entrar. Um dia ligou-me a Isabel Salema, que
fizera parte daquele primeiro grupo de estagiários (como o Rui e a Alexandra Prado Coelho,
que tinham sido da minha turma na faculdade, o Paulo Moura, o Pedro Rosa
Mendes, a Bárbara Simões, o Vasco Câmara, tantos outros). Encontrei-me com
a Isabel num café das Amoreiras e ela perguntou se eu queria ir para o jornal.
Havia duas hipóteses na mesa: ser jornalista do Internacional ou ir editar o
suplemento “Leituras”, até aí feito por Tereza Coelho, que acabava de sair.
Ambas aconteceram, por essa ordem.
5. O Internacional era uma jóia do PÚBLICO. Ali estavam Teresa de Sousa e Jorge Almeida Fernandes,
enciclopédias vivas, mais a enciclopédia de Médio Oriente que era a editora
Margarida Santos Lopes. Estava o impassível João Carlos Silva, que parecia
nascido para editar, fosse o Internacional ou a revista Pública, durante anos.
Estavam jovens grandes repórteres como a Alexandra, o Paulo, o Pedro,
jornalistas especialistas em cada parte do mundo, dezenas de correspondentes
internacionais. Aquele era o jornal que tinha arrancado na Guerra do Golfo de
1990, com Adelino Gomes e tantos outros como enviados. E continuava a ser. A
minha primeira pasta foi Europa de Leste e Rússia (onde eu continuara ir, para
a rádio). Assim me achei em Iasnaia Poliana, a terra dos Tolstoi, pelo Verão de
98.
6. Mas a Cultura ia montar uma equipa nova, e meses depois mudei-me para
lá. Fui editar a secção, com a Isabel Salema, e o suplemento “Leituras” (que
entretanto fora assegurado por Mário Santos, leitor raro, vastíssimo). A
Cultura era outra jóia do PÚBLICO, outro antro de craques, todo um histórico
desde a fundação, passando pelas barbas do ex-editor Torcato Sepúlveda. Ali
moravam críticos de teatro como Manuel João Gomes! O luxo de o ouvir contar dos
surrealistas, de Luiza Neto Jorge ou da vantagem de comer sopa logo pela manhã.
Ou críticos de música como Fernando Magalhães, um génio que escrevia sobre
musas celtas enrolado no cachecol do seu clube. Ali estava o Jaime Rocha dos
poemas e das peças, que para nós será sempre Rui Ferreira e Sousa, o cabelo
branco mais bonito das redacções. E grandes jovens jornalistas e/ou críticos,
que se matavam a trabalhar: Kathleen Gomes, Lucinda Canelas, Joana Gorjão Henriques, Tiago Luz Pedro, Rui Catalão, Pedro Ribeiro.
Isto era na Quinta do Lambert, já noutro edifício, mas meio mundo ainda fumava.
O Vasco fumava à minha frente, a Isabel fumava à minha esquerda, e eu fumava no
meio das torres de livros do “Leituras”, que se acumulavam entre o meu
computador e a parede. Mesmo com parede, havia desmoronamentos. E ministros da
Cultura que caíam, e ofertas de pancada. A guerra diária tinha muitas frentes,
várias páginas conquistadas na reunião de editores da manhã, e ainda havia a
guerra semanal dos suplementos. Aquela secção era um reboliço de gente a chegar
com discos, a sair com livros, a ir para a rua, várias gerações cruzadas, um
caldo de memória do século XX, património e contra-cultura, colectivos e
solitários. A gente fechava páginas às tantas da noite, e podia continuar a
escrever até chegarem as empregadas da limpeza, e então ia tomar o
pequeno-almoço, para voltar à guerra, outra vez.
7. A Cultura teve vários suplementos desde o começo do PÚBLICO. Antes de o
milénio virar, passou a ter dois, novos. Um para livros, música clássica, artes
e arquitectura, o “Mil Folhas”, de que eu era editora. Outro para cinema,
música pop, dança e teatro, o “Y”, de que o Vasco era editor. Foi o Eduardo
Prado Coelho que sugeriu Mil Folhas, e eu abandonei logo a minha lista de maus
nomes. Foi também o Eduardo que sugeriu jovens estudantes de Letras, como Clara
Rowland e Francisco Frazão, para juntar aos muitos críticos já ligados ao
jornal. Além de assinar uma página no “Mil Folhas”, o Eduardo foi sempre um
conselheiro. Morreu há dez anos, e a falta que nos faz, em humor e
inteligência, cultura e argúcia. Ninguém em Portugal ocupou o seu papel, os
seus vários papéis. De resto, gostava de ter aqui espaço para agradecer a todos
os críticos com quem trabalhei semanalmente, e me aturaram inexperiências,
tantas. Além do Eduardo, havia vários colunistas regulares. O Jorge Silva Melo
foi um deles, e não há dia em que eu receba aqueles mails dos Artistas Unidos
sem lhe tirar o chapéu pela persistência, por tudo o que deu e dá a este país
capaz de abandonar os melhores. Um dia, no meio de um descampado, discuti com o
Jorge ao telefone, sei lá eu já porquê. Que parvoíce. Que saudades de o ler.
Que sorte ter feito parte do meu trabalho ler gente assim, ter feito o “Mil
Folhas” quando havia tantas editoras independentes, tê-lo feito com a Ivone
Ralha a paginar, e o Jorge Silva como director de arte, sempre a brigar por
mais ilustração. Ser possível fazer números especiais quando o Manuel Hermínio
Monteiro morreu, a Sophia morreu, o Cesariny morreu (tantos desenhos,
fotografias, manuscritos que ficaram algures no PÚBLICO). Poder ter Vítor Silva
Tavares a escrever sobre Almada, e bater no computador a “cartinha” dele, que
era o texto. Convidar Ernesto Sampaio a escrever crítica de teatro, recebê-lo
na redacção, publicar os seus textos. Tantos textos do caraças.
8. Estive na Cultura por anos, com um pé volta e meia no Internacional. No
11 de Setembro, o PÚBLICO já estava no edifício de Picoas (terceira mudança), e
atulhámos-nos todos madrugada dentro, para fazer uma segunda edição. Voei para
o Paquistão logo a seguir, estive um mês a tentar passar a fronteira afegã,
depois esperei sete anos para viajar pelo Afeganistão. Mas pelo meio, aconteceu
o Médio Oriente: Israel/Palestina, Iraque, Jordânia, Líbano. E isso tem origem
na Cultura. Tudo porque a nova Biblioteca de Alexandria ia abrir na Primavera
de 2002, eu queria conhecer a cidade e a inauguração era um bom gancho. Propus
ir um mês, como se fosse de férias, mas o jornal dava-me esse tempo, e eu
escrevia para o jornal. Só que, quando aterrei no aeroporto do Cairo, a
Margarida Santos Lopes ligou-me, e esse telefonema mudou o meu destino. O
exército israelita estava a invadir as cidades palestinianas, na sequência de
uma série de atentados suicidas. A Margarida perguntava se eu não podia ir
cobrir aquilo. Eu não fazia bem ideia do que era aquilo, nem sequer onde era
Ramallah, mas fui. Em vez de apanhar um autocarro para Alexandria, apanhei um
avião para Jerusalém. Acabei por ir a Alexandria em finais desse ano porque a
inauguração da Biblioteca foi adiada, mas a paixão por Jerusalém e tudo em
volta dura até hoje, e devo-a à Margarida. Essa Primavera de 2002 teve cerco à
Basílica da Natividade, recolher obrigatório em Ramallah, massacre em Jenin, e
tiveram de me arrancar de Gaza ao fim de mês e meio a escrever todos os dias,
porque já ninguém aguentava mais textos sobre o assunto, nem esperar que eu os
enviasse às tantas da noite.
9. Aproveito para agradecer a toda a gente que esperou in extremis por textos meus sem arrancar cabelos, fosse de Gaza ou de Trás-os-Montes. E,
a propósito de Trás-os-Montes, este texto é centrado na redacção de Lisboa
porque era a minha, mas fui feliz um mês na redacção do Porto, correndo serras
e léguas com o Paulo Pimenta ou o Nelson Garrido a fotografar. Tudo o que fizemos, dessa
vez ou noutras, da nascente do Sabor ao Padre Fontes, passando pela visita a
Margarida Cordeiro, e pelos territórios do cinema de António Reis, está entre
as reportagens de que mais gostei na vida.
10. Além da Cultura e do Internacional, trabalhei vários anos na Pública,
onde tive outra grande editora, a Dulce Neto. A Joana Amado foi minha editora
em diferentes alturas, nomeadamente nos anos do Brasil. Gostaria de ter
integrado em algum momento a equipa de José Vítor Malheiros na Ciência. O anjo
da guarda da direcção e de todos nós era a Lucília Santos. Secretárias como
Isabel Anselmo e Paula Dias não perderam a paciência, idem para desks como Rita Pimenta e Manuela Barreto, ou a telefonista São
ou a Leonor Sousa, no Centro de Documentação, que me ajudou tanto. Coadjuvado
por Nuno Pacheco, o director que tive por mais
tempo foi José Manuel Fernandes, com quem travei dicussões tão épicas como
daquela vez em que o relógio dele voou contra o vidro do gabinete. Essa foi por
causa do Conselho de Redacção. De resto, da invasão do Iraque ao conflito
israelo-palestiniano, estávamos em desacordo em quase tudo. Mas isto nunca se
traduziu em qualquer obstáculo a que eu fosse enviada ou escrevesse, que eu
saiba. Foi JMF quem deu luz verde a várias propostas minhas, como ir morar para
Jerusalém como correspondente improvisada. Também foi ele quem me convidou a
escrever crónicas, nem sei bem há quanto tempo, 18 anos? A primeira série
chamava-se Erva-moira e era uma tortura tão grande que ao fim de um tempo deixei um bilhete a
JMF, a dizer que era melhor esquecermos. Em Jerusalém, voltei a fazer crónicas,
chamavam-se Oriente
Próximo. Mais tarde, Viagens com Bolso, depois Atlântico-Sul. Optei por deixar os quadros em Dezembro de 2012, quando morava no Rio de
Janeiro. Desde então, acordei com o jornal algumas reportagens (primeiro
mensais, depois anuais) e uma crónica semanal, que desde a volta do Brasil se
chama Não
ficções. Esta é a última. Amanhã vou trepar
pelas paredes por causa do que esqueci. Muito obrigada a quem fez este jornal,
e a quem o leu. O PÚBLICO é desses muitos. Que inspirem quem vier.
Jornalista