Não há sopa, mas o prato tem que ter as medidas correctas...
Há dias um pobre pediu-me esmola. Depois, encorajado pela
minha generosidade e esperançoso na minha gravata, perguntou se eu fazia o
favor de entregar uma carta ao senhor ministro. Perguntei-lhe qual ministro e
ele, depois de pensar um pouco, acabou por dizer que era ao ministro que o
andava a ajudar.
O texto é este:
"Senhor ministro, queria pedir-lhe uma grande ajuda: veja
lá se deixa de me ajudar. Não me conhece, mas tenho 72 anos, fui pobre e
trabalhei toda a vida. Vivia até há uns meses num lar com a minha magra
reforma.
Tudo ia quase bem, até o senhor me querer ajudar.
Há dois anos vierem uns inspectores ao lar. Disseram que
eram de uma coisa chamada Azai. Não sei o que seja. O que sei é que destruíram
a marmelada oferecida pelos vizinhos e levaram frangos e doces dados como
esmola. Até os pastelinhos da senhora Francisca, de que eu gostava tanto, foram
deitados fora. Falei com um deles, e ele disse-me que tudo era para nosso bem,
porque aqueles produtos, que não estavam devidamente embalados, etiquetados e
refrigerados, podiam criar graves problemas sanitários e alimentares.
Não percebi nada e perguntei-lhe se achava bem roubar a
comida dos pobres. Ele ficou calado e acabou por dizer que seguia ordens.
Fiquei então a saber que a culpa era sua e decidi escrever-lhe. Nessa noite todos nós ali passámos fome, felizmente sem problemas sanitários e alimentares graves.
Ah! É verdade. Os tais fiscais exigiram obras caras na
cozinha e noutros locais. O senhor director falou em fechar tudo e pôr-nos na
rua, mas lá conseguiu uns dinheiritos e tudo voltou ao normal. Como os inspectores
não regressaram e os vizinhos continuaram a dar-nos marmelada, frangos e até,
de vez em quando, os belos pastéis da tia Francisca, esqueci-me de lhe
escrever. Até há seis meses, quando destruíram tudo.
Estes não eram da Azai. Como lhe queria escrever, procurei saber tudo certinho. Disseram-me que vinham do Instituto da Segurança Social. Descobriram que estava tudo mal no lar. O gabinete da direcção tinha menos de 12 m2 e na instalação sanitária do refeitório faltava a bancada com dois lavatórios apoiados sobre poleias e sanita com apoios laterais. Os homens andaram com fitas métricas em todas as janelas e portas e abanaram a cabeça muitas vezes. Havia também um problema qualquer com o sabonete, que devia ser líquido.
Enfureceram-se por existirem quartos com três camas, várias
casas de banho sem bidé e na área destinada ao duche de pavimento (ligeiramente
inferior a 1,5 m x 1,5 m) não estivesse um sistema que permita tanto o
posicionamento como o rebatimento de banco para banho de ajuda (uma coisa que
nem sei o que seja). Em resumo, o lar era uma desgraça e tinha de fechar.
Ultimamente pensei pedir aos senhores fiscais para virem à
barraca onde vivo desde então, medir as janelas e ver as instalações sanitárias
(que não há!). Mas tenho medo que ma fechem, e então é que fico mesmo a dormir
na rua.
Mas há esperança. Fui ontem, depois da missa, visitar o lar
novo que o senhor prior aqui da freguesia está a inaugurar, e onde talvez tenha
lugar. Fiquei espantado com as instalações. Não sei o que é um hotel de luxo,
porque nunca vi nenhum, mas é assim que o imagino.
Perguntei ao padre por que razão era tudo tão grande e tão
caro. Afinal, se fosse um bocadinho mais apertado, podia ajudar mais gente. Ele
respondeu que tinha apenas cumprido as exigências
da lei (mais uma vez tem a ver consigo, senhor ministro). Aliás o prior
confessou que não tinha conseguido fazer mesmo tudo, porque não havia dinheiro,
e contava com a distracção ou benevolência dos inspectores para lhe aprovarem o
lar.
Se não, lá ficamos nós mais uns tempos nas barracas.
Senhor ministro, acredito que tenha excelentes intenções e
faça isto por bem. Como não sabe o que é a pobreza, julga que as exigências
melhoram as coisas. Mas a única coisa que estas leis e fiscalizações conseguem
é criar desigualdades dentro da miséria.
Porque não se preocupam com as casas dos pobres, só com as
que ajudam os pobres."
Triste País que procede assim com os pobres….
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