Retirado Daqui
No próximo sábado, dia 25 de
Abril, alguém afirmará o que outros disseram em todas as comemorações:
mais que tudo, foi uma revolução sem sangue, a única que se conhece, a
substituição de um regime por outro regime sem que para isso tenha sido
derramada uma única gota de sangue. Uma revolução com cravos em vez de
balas, com tanques onde soldados partilharam uma ideia de futuro com a
população, em vez de confrontos. Sem dúvida uma revolução de heróis,
homens que arriscaram morrer pelo ideal da liberdade, que não se
importaram de jogar a vida para que outro jogo, mais importante, pudesse
ser ganho.Uma revolução sem derramamento de sangue que é uma faca
afiada para a família de quatro jovens para quem o 25 de Abril foi o
primeiro dia em que tiveram a ilusão de que eram livres, e ao mesmo
tempo o dia que na sua vida foi mais curto que todos os outros, o dia em
que morreram.
São por isso,
numa perspectiva romântica (a mais interessante de todas as
perspectivas), heróis improváveis do 25 de Abril. Os mais esquecidos
entre todos a quem o tempo fez por ocultar.Ao que se sabe, saíram do
lugar onde dormiram com o entusiasmo próprio dos que sentem viver um
momento histórico, quem sabe um instante decisivo das suas vidas, do seu
futuro. Dirigiram-se para o Chiado, Rua António Maria Cardoso, lugar
que simbolizava o medo que alavancou grande parte do poder de Salazar e
de um Estado Novo que o professor de Santa Comba moldou à sua própria
personalidade. Naqueles meados de 1974, Salazar já partira de entre os
vivos. Marcello Caetano substituíra-o na presidência do Conselho e
deixara-se enredar pelos ultras do regime, uma lástima que pagaria muito
cara.Mas desvio-me do que verdadeiramente interessa, a história de
quatro jovens que, cada um com os seus motivos e circunstâncias, saíram
de casa e se dirigiram para a sede da PIDE. Muitas dezenas de pessoas,
talvez centenas, tiveram exactamente a mesma ideia que Fernando Luís
Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Gesteiro, João Guilherme Aguiar
Arruda e José James Hartley Barnetto.
À
medida que corria a manhã e se multiplicavam as notícias na rádio e na
RTP (tomadas de assalto pelas forças revolucionárias), foram chegando
homens e mulheres com vontade de fazer justiça ou de ver a justiça ser
feita contra os polícias políticos responsáveis pelas maiores
barbaridades do século xx português. Os comunistas chamavam-lhes
torcionários, cresci com essa palavra na cabeça.Num instante em que já
era conhecida a rendição de Marcello Caetano e a capitulação do regime,
momento em que a população gritava palavras de ordem na estreita rua no
coração de Lisboa, os agentes da PIDE/DGS, sentindo-se cercados pelo
povo, abriram fogo. Dispararam indiscriminadamente. Para matar uns
tantos, para assustar os que estivessem no cerco, para fazer o que fosse
preciso e prepararem um plano de fuga.Vários populares caíram. Todos
correram para um lado e para o outro da rua. Quem lá esteve fala de
gritos, pânico, confusão. Os tiros continuaram durante longos segundos, a
maioria foram disparados para o ar, mas muita gente ficou no chão,
ferida. Entre esses, quatro viram a liberdade morrer no dia em que
nasceu. O mais novo tinha 18 anos e o mais velho 37, uma vida à frente.
Se
cumprissem a média de vida dos portugueses, ainda hoje estariam
despertos, teriam tido uma vida, uma outra vida. Não a tiveram. São
heróis esquecidos do 25 de Abril, talvez os mais esquecidos, os que
poucos recordam, pois, para todos os efeitos, na Revolução não houve
vítimas, apenas cravos em espingardas que nunca dispararam. Mártires
involuntários do 25 de Abril ficaram. Ninguém deles é recordado, ninguém
reteve os seus nomes – mas nomes que, sem paradoxo, ficam para a
história. Como gosta de dizer um grande amigo, ficam como o exemplo do
arbítrio desesperado do velho regime e também da serenidade da
democracia que se iniciava.Um país de brandos costumes. Mas também um
país de coragem (e ingenuidade) que fez jovens avançarem para a sede da
PIDE ou para o Quartel do Carmo, sem garantias de que não pudessem ser
um alvo fácil. Não lhes passava pela cabeça a ideia reaccionária de que
algum mal lhes pudesse acontecer, não naquele dia que parecia protegido
contra a morte – pelo menos assim ficou conhecido entre as gerações que
já nasceram em liberdade.Não se sabe muito sobre cada um dos jovens que
tombaram.
Uma ideia que dará
uma boa reportagem ou um bom documentário. Sabe-se que entre eles o
segundo mais jovem, João Arruda, tinha 20 anos e era admirador de Martin
Luther King. Um jovem açoriano, estudante em Lisboa, filho de um
varredor de ruas em Ponta Delgada que a família gosta de recordar como
um miúdo que acreditava convictamente na democracia. Como poderia ter
ele obedecido aos apelos sucessivos do MFA na rádio, como poderia ter
ficado no seu quarto alugado quando todos os que admirava estavam na rua
a viver o primeiro dia de construção de um novo livro?O mesmo se
poderia escrever de Fernando Gesteiro, o mais novo de todos,
transmontano empregado num escritório, rapaz que, acabada a festa da
maioridade, gozava da protecção do forte núcleo de Montalegre, terra de
gente que se jura íntegra e corajosa. Ou de Fernando dos Reis, soldado
da primeira companhia de Penamacor, morto num combate improvável em
plena Metrópole.
Ou do mais
velho, José Barnetto, natural de Vendas Novas. Ou os muitos feridos, a
larga maioria jovens estudantes, que viram os seus corpos feridos e
marcados para sempre – entre eles Aarão de Almeida, Agostinho Soares,
António Lima, António Cruz, António Esteves, António Ribeiro, Armando
Afonso, Armindo Oliveira, Camélia Pimenta, Fernando Martins, Francisco
Ramos, Joaquim Cristo, Jorge Costa, José Pereira, José Fernandes, José
Gutierrez, Luís de Oliveira, Manuel Alves, Maria Neto, Maria Martins,
Maria Flores, Rogério Osório e Rui Morais. Por sorte, apenas feridos.
Para esses, ao dia em que caíram na António Maria Cardoso, seguiram-se
outros; viveram a liberdade e provaram até à última gota o que faz a
vida ser vida, incluindo as tragédias a que estamos condenados. Quanto
aos pides, os que estavam nessa malfadada sede, apenas foram presos no
dia seguinte, a 26 de Abril. A Revolução estava numa marcha imparável.
As horas mais felizes e agitadas para milhares de portugueses, dias de
medo e inquietação para outros tantos. E dias que não foram gozados por
quatro jovens que morreram no dia mais feliz das suas vidas, o dia em
que foram livres menos de 24 horas.
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