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terça-feira, 28 de abril de 2015

A história de quatro portugueses que morreram no dia mais feliz das suas vidas

Retirado Daqui
 
No próximo sábado, dia 25 de Abril, alguém afirmará o que outros disseram em todas as comemorações: mais que tudo, foi uma revolução sem sangue, a única que se conhece, a substituição de um regime por outro regime sem que para isso tenha sido derramada uma única gota de sangue. Uma revolução com cravos em vez de balas, com tanques onde soldados partilharam uma ideia de futuro com a população, em vez de confrontos. Sem dúvida uma revolução de heróis, homens que arriscaram morrer pelo ideal da liberdade, que não se importaram de jogar a vida para que outro jogo, mais importante, pudesse ser ganho.Uma revolução sem derramamento de sangue que é uma faca afiada para a família de quatro jovens para quem o 25 de Abril foi o primeiro dia em que tiveram a ilusão de que eram livres, e ao mesmo tempo o dia que na sua vida foi mais curto que todos os outros, o dia em que morreram. 

São por isso, numa perspectiva romântica (a mais interessante de todas as perspectivas), heróis improváveis do 25 de Abril. Os mais esquecidos entre todos a quem o tempo fez por ocultar.Ao que se sabe, saíram do lugar onde dormiram com o entusiasmo próprio dos que sentem viver um momento histórico, quem sabe um instante decisivo das suas vidas, do seu futuro. Dirigiram-se para o Chiado, Rua António Maria Cardoso, lugar que simbolizava o medo que alavancou grande parte do poder de Salazar e de um Estado Novo que o professor de Santa Comba moldou à sua própria personalidade. Naqueles meados de 1974, Salazar já partira de entre os vivos. Marcello Caetano substituíra-o na presidência do Conselho e deixara-se enredar pelos ultras do regime, uma lástima que pagaria muito cara.Mas desvio-me do que verdadeiramente interessa, a história de quatro jovens que, cada um com os seus motivos e circunstâncias, saíram de casa e se dirigiram para a sede da PIDE. Muitas dezenas de pessoas, talvez centenas, tiveram exactamente a mesma ideia que Fernando Luís Barreiros dos Reis, Fernando Carvalho Gesteiro, João Guilherme Aguiar Arruda e José James Hartley Barnetto. 

À medida que corria a manhã e se multiplicavam as notícias na rádio e na RTP (tomadas de assalto pelas forças revolucionárias), foram chegando homens e mulheres com vontade de fazer justiça ou de ver a justiça ser feita contra os polícias políticos responsáveis pelas maiores barbaridades do século xx português. Os comunistas chamavam-lhes torcionários, cresci com essa palavra na cabeça.Num instante em que já era conhecida a rendição de Marcello Caetano e a capitulação do regime, momento em que a população gritava palavras de ordem na estreita rua no coração de Lisboa, os agentes da PIDE/DGS, sentindo-se cercados pelo povo, abriram fogo. Dispararam indiscriminadamente. Para matar uns tantos, para assustar os que estivessem no cerco, para fazer o que fosse preciso e prepararem um plano de fuga.Vários populares caíram. Todos correram para um lado e para o outro da rua. Quem lá esteve fala de gritos, pânico, confusão. Os tiros continuaram durante longos segundos, a maioria foram disparados para o ar, mas muita gente ficou no chão, ferida. Entre esses, quatro viram a liberdade morrer no dia em que nasceu. O mais novo tinha 18 anos e o mais velho 37, uma vida à frente. 

Se cumprissem a média de vida dos portugueses, ainda hoje estariam despertos, teriam tido uma vida, uma outra vida. Não a tiveram.  São heróis esquecidos do 25 de Abril, talvez os mais esquecidos, os que poucos recordam, pois, para todos os efeitos, na Revolução não houve vítimas, apenas cravos em espingardas que nunca dispararam. Mártires involuntários do 25 de Abril ficaram. Ninguém deles é recordado, ninguém reteve os seus nomes – mas nomes que, sem paradoxo, ficam para a história. Como gosta de dizer um grande amigo, ficam como o exemplo do arbítrio desesperado do velho regime e também da serenidade da democracia que se iniciava.Um país de brandos costumes. Mas também um país de coragem (e ingenuidade) que fez jovens avançarem para a sede da PIDE ou para o Quartel do Carmo, sem garantias de que não pudessem ser um alvo fácil. Não lhes passava pela cabeça a ideia reaccionária de que algum mal lhes pudesse acontecer, não naquele dia que parecia protegido contra a morte – pelo menos assim ficou conhecido entre as gerações que já nasceram em liberdade.Não se sabe muito sobre cada um dos jovens que tombaram. 

Uma ideia que dará uma boa reportagem ou um bom documentário. Sabe-se que entre eles o segundo mais jovem, João Arruda, tinha 20 anos e era admirador de Martin Luther King. Um jovem açoriano, estudante em Lisboa, filho de um varredor de ruas em Ponta Delgada que a família gosta de recordar como um miúdo que acreditava convictamente na democracia. Como poderia ter ele obedecido aos apelos sucessivos do MFA na rádio, como poderia ter ficado no seu quarto alugado quando todos os que admirava estavam na rua a viver o primeiro dia de construção de um novo livro?O mesmo se poderia escrever de Fernando Gesteiro, o mais novo de todos, transmontano empregado num escritório, rapaz que, acabada a festa da maioridade, gozava da protecção do forte núcleo de Montalegre, terra de gente que se jura íntegra e corajosa. Ou de Fernando dos Reis, soldado da primeira companhia de Penamacor, morto num combate improvável em plena Metrópole. 

Ou do mais velho, José Barnetto, natural de Vendas Novas. Ou os muitos feridos, a larga maioria jovens estudantes, que viram os seus corpos feridos e marcados para sempre – entre eles Aarão de Almeida, Agostinho Soares, António Lima, António Cruz, António Esteves, António Ribeiro, Armando Afonso, Armindo Oliveira, Camélia Pimenta, Fernando Martins, Francisco Ramos, Joaquim Cristo, Jorge Costa, José Pereira, José Fernandes, José Gutierrez, Luís de Oliveira, Manuel Alves, Maria Neto, Maria Martins, Maria Flores, Rogério Osório e Rui Morais. Por sorte, apenas feridos. Para esses, ao dia em que caíram na António Maria Cardoso, seguiram-se outros; viveram a liberdade e provaram até à última gota o que faz a vida ser vida, incluindo as tragédias a que estamos condenados.  Quanto aos pides, os que estavam nessa malfadada sede, apenas foram presos no dia seguinte, a 26 de Abril. A Revolução estava numa marcha imparável. As horas mais felizes e agitadas para milhares de portugueses, dias de medo e inquietação para outros tantos. E dias que não foram gozados por quatro jovens que morreram no dia mais feliz das suas vidas, o dia em que foram livres menos de 24 horas.

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