“Recordo
um alentejano da raia, velho duns oitenta e tal anos, com que me cruzei algumas
vezes na sala de espera do IPO. Aparecia sempre de fato, o mesmo fato, de
colarinho apertado sem gravata. Quando era chamado, avançava cheio de
dignidade, como um príncipe e lhe digo que nunca vi gravata mais bonita do que
aquela que ele não trazia. Sabe, somos um país de príncipes.”
Cito
de memória este pequeno excerto de entrevista ao António Lobo Antunes que ouvi
há dias na TSF.
Impressionou-me
este seu olhar sobre um país que tendemos a desprezar.
Imagino
esse velho alentejano, mãos grossas, pele tisnada, cabeça erguida, com a suave
altivez que só o orgulho numa vida honrada de trabalho consegue dar.
Imagino-o,
na sua aldeia, ao fim da tarde, sentado à soleira da porta, olhando um bando de
crianças imaginárias brincando no largo da Igreja. Há muito que cada uma dessas
crianças partiu sem deixar substitutos e esvaziando de morte a vida dos que
ficaram. Também ele, noutros tempos, pensou em partir. Não que não amasse o seu
Alentejo, mas para fugir a uma vida de corpos dobrados ao sol que pouco mais
dava que o suficiente para uma refeição digna. Mas vieram os filhos.
O
primeiro, estava ele em Angola, uma terra grande e vermelha como o seu
Alentejo, depois os outros três.
Ainda
se lembra de Angola com uma pontinha de saudade.
Não
da guerra, que não deixa saudades a ninguém, nem da camaradagem que para ele se
ficou no barco de regresso, mas da imensidão duma terra que prometia futuro. Um
futuro adiado percebeu depois.
Com
os filhos, vem uma responsabilidade que condiciona a aventura. Por isso ficou,
a tempo de lhe ver entrar aldeia adentro ex-camaradas de armas anunciando um
mundo novo, sem patrões nem trabalho de sol a sol, que “a terra é de quem a
trabalha!” Ainda alvitrou questionar quem lhe pagaria o salário para sustentar
os quatro gaiatos que tinha em casa quando deixasse de haver patrões, mas já
baloiçavam no ar foices e forquilhas para ir “tomar o que é nosso”.
Tivera
dose de guerra suficiente para saber que a violência só serve para agudizar o
ódio, que é o que fica quando regressa a normalidade. Por isso não embarcou
“nos amanhãs que cantam”, mas foi levado por eles. Como prometido,
desapareceram os patrões de Lisboa (não que aparecessem muito), para aparecerem
outros que conhecia bem. Eram vizinhos de toda a vida e, aos Domingos,
costumavam jogar com ele à sueca no Central. Eram patrões em nome de todos, mas
eram patrões. Já não curvavam os corpos sobre as searas, nem jogavam à sueca
aos Domingos, nem se juntavam ao fim da tarde para chorar em cante as cores do
seu Alentejo. Agora eram políticos e as terras eram unidades de produção e o
Largo da Igreja era Praça 25 de Abril.
Tudo
mudara menos o seu salário que antes, mesmo com dificuldade, lhe dava para amealhar
algum e agora desaparecia ainda a semana não terminara.
Quando
os campos deixaram de produzir, por incúria, por incompetência, por ignorância
de quem mandava em nome de todos, regressou a miséria e a desesperança de que
se lembrava da meninice.
Voltou
a sonhar em partir. Ficou, pelo menos uma parte dele, porque os filhos, os
quatro, partiram em busca dum sonho que já fora seu e que lhes entregara como
que em herança. Pouco depois, regressaram os antigos patrões e voltou a
acreditar que os campos se encheriam de espigas doiradas a balouçar ao sol
quente de Agosto. Mas agora quem mandava eram os filhos dos patrões, que
falavam dos subsídios que vinham da Europa para não semear.
Achava
estranho. Para ele a Europa era a Suíça, onde trabalhava o seu mais velho ou a
Alemanha onde estava a menina dos seus olhos com o marido que dava no duro na
construção. Por isso, não percebia porque é que essa Europa que precisava do
trabalho dos seus gaiatos queria pagar para nós, por cá, não trabalharmos? Mas
assim era e os campos continuavam abandonados, vazios de dar dó. A não ser
junto à raia, numas propriedades compradas por uns espanhóis que tinham
plantado oliveiras que, ouvira dizer, já estavam grandes e carregadinhas.
Talvez
houvesse trabalho para a apanha.
Depois
viera o euro e, com ele, as estradas e o Alqueva. Um mar d’água como nunca
vira, para regar os campos e encher do verde da esperança o seu Alentejo.
Falava-se de turismo, de magotes de gente para ver este mar d’água, mas regadio
nem um.
Tanta
água, tanto dinheiro, tanto trabalho para nada.
Agora
era a crise. Ouvia na televisão que devíamos muito dinheiro à Europa, tanto que
ele nem conseguia imaginar quanto fosse. Só podia ser daquele que os filhos dos
patrões receberam para não semear, ou do que gastaram para fazer o Alqueva e as
estradas novas que estavam por todo o Alentejo.
Só
podia, porque ele não devia dinheiro nenhum à Europa. Nem à Europa, nem a
ninguém. Sempre tinha vivido com o pouco que ganhava com o seu trabalho e se
hoje tinha algum de lado era porque a sua senhora era poupada e nunca esbanjara
e os filhos, graças a Deus todos bem, lhe mandavam algum, todos os anos.
Ele
não devia nada à Europa, a não ser o facto de ter recebido de braços abertos o
seu mais velho e a sua menina, que em boa hora tinham deixado este pedaço de
terra ao abandono, sem esperança, nem futuro.Não queria saber de dívida
nenhuma, mas a verdade é que à conta dela, tinham fechado o centro de saúde,
onde ia com regularidade, mais para ouvir e ser ouvido, do que para se queixar
das maleitas que a vida lhe ensinara a guardar para si. Por isso, quando as
forças foram desaparecendo e o tisnado do sol se transformou num amarelo
pálido, vestiu o seu fato de Domingo e foi ao hospital a Évora, a mando da
mulher, saber o que se passava. Estava muito mal.
Se
tivesse vindo mais cedo… Assim, tinha de ir a Lisboa fazer uns tratamentos
todas as semanas. Eram tratamentos difíceis, que o iam deitar muito a baixo,
mas que, se tudo corresse bem, o deixariam bom, porque nestas idades a doença
avançava mais lentamente e por isso tudo haveria de correr bem, dissera-lhe uma
doutora simpática e bonita, que mal falava português. Para ele não havia
tratamentos difíceis. Difícil tinha sido toda a sua vida. Por isso, todas as
segundas de manhã, vestia o seu fato de Domingo e esperava pacientemente a
chegada da ambulância que o levaria até Lisboa, ao IPO.
Nunca
tinha ido a Lisboa, nem mesmo quando os seus dois do meio tinham partido para a
América, nem nunca tinha andado nessas estradas novas e largas que atravessam o
seu Alentejo. O que transportarão por estas estradas se já nada se produz? Da
primeira vez ia um bocadinho a medo, que não é vergonha nenhuma, nestas coisas
da saúde, mas lá no IPO eram todos tão simpáticos. Até havia uma enfermeira que
lhe costumava dizer que se ele fosse mais novo, ai, ai. Sabia que era a
brincar, mas sabia-lhe bem. A verdade é que a doutora que mal falava português
tinha razão e o tratamento era difícil. Agoniava-o e deixava-o sem forças, mas
isso guardava para si e nem lá em casa, à sua senhora, deixava transparecer o
quanto lhe custava, embora lhe visse a tristeza no olhar, sempre que os grãos
de que tanto gostava ficavam no prato que carinhosamente lhe preparara. Neste
último tratamento, ouvira qualquer coisa sobre uns cortes na saúde à conta da
tal dívida que nunca mais se resolvia. Rezava a Deus para que a Europa cortasse
nos alquevas, nas estradas, nos comboios que estavam sempre em greves, ou na
Câmara, que ainda ontem ouvira que ia gastar milhões num museu qualquer, porque
não sabia como ia ser se a ambulância deixasse de ir busca-lo às segundas, ou
se o tratamento acabasse de repente. Mas acreditava que a Europa, que tinha
recebido tão bem o seu mais velho e a menina dos seus olhos, não havia de lhe
falhar agora, que ele sentia que estava quase a vencer a doença, como sempre
vencera todas as adversidades que lhe tinham aparecido ao longo da vida.
Não
sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de noite às
segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o colarinho sem
gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao IPO, a Lisboa,
para o tratamento violento que o pode salvar. Não sei se ainda há ambulâncias
que façam este transporte gratuito, ou dinheiro no IPO para pagar os
medicamentos de que necessita.
O
que sei é que durante os últimos 30 anos tudo se tem feito para que não haja.
Os
senhores que acordam de manhã, às segundas-feiras, vestem um dos seus muitos
fatos, apertam o colarinho e colocam uma das suas variadas gravatas,
empenharam-se durante anos em destruir o sector produtivo, primeiro em nome do
socialismo, depois em nome da Europa, ao mesmo tempo que esbanjavam os nossos
fracos recursos em empresas que só continuam nacionalizadas porque são
autênticos antros de compadrio e corrupção; criaram um Estado pantagruélico que
vive do esmagamento fiscal de quem trabalha; permitiram o desvio de milhões de
euros de dinheiros europeus levado a cabo por autênticas redes criminosas de
suposta formação profissional geridas pelas clientelas partidárias; promoveram
o endividamento das autarquias, transformando-as em pequenos estados, onde o
rigor, a seriedade e a transparência são mera utopia; destruíram a justiça,
onde só se investiga prendendo o suspeito ou fazendo escutas, transformando o
mais inalienável dos direitos – o da inocência até prova em contrário – em mera
retórica; alienaram o futuro da segurança social em nome da equidade e da
solidariedade, trazendo para o sistema quem para ele nunca contribui e
permitindo toda a espécie de falcatruas e vigarices; incentivaram a fraude por
via da completa ausência de regulação e promoveram a existência de verdadeiros
monopólios em sectores essenciais como a energia. Durante trinta anos, foi um
fartar vilanagem sem consequências, porque esta gente que esteve no poder não
nos governou, governou-se, fazendo tábua rasa dos mais elementares princípios
de gestão em prol do bem comum.
Por isso, hoje, não existe dinheiro para o essencial, as funções soberanas do Estado, a saúde e educação.
Por isso, hoje, não existe dinheiro para o essencial, as funções soberanas do Estado, a saúde e educação.
Por
isso, talvez deixe de haver dinheiro para trazer os doentes ao IPO ou para os
medicamentos que os podem curar.
Por
isso, não sei se este velho alentejano que imagino, continua a acordar de noite
às segundas-feiras, a vestir o seu fato domingueiro, a apertar o colarinho sem
gravata e a aguardar pacientemente a ambulância que o levará ao IPO, a Lisboa,
para o tratamento violento que o pode salvar.
Só
sei que se tal acontecer, sempre que ouvir o seu nome a ser chamado,
levantar-se-á e caminhará de fato domingueiro, colarinho apertado, cheio de
dignidade, como um príncipe.
Apesar
dos nossos governantes, “somos um país de príncipes”.
[João
Almeida Moreira]
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