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terça-feira, 30 de novembro de 2010

Os EUA não conseguem guardar segredos

Por Jorge Almeida Fernandes Uma vez mais, não há revelações, mas esta megaoperação tem mais impacto do que as "fugas" sobre o Afeganistão e Iraque, na medida em que mina a credibilidade diplomática americana


A secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, denunciou ontem a divulgação de 250 mil documentos diplomáticos americanos pela organização WikiLeaks como "um ataque à comunidade internacional". Anunciou "medidas enérgicas" contra os autores do "roubo", que "mina os esforços americanos para trabalharem com os outros países".

A terceira megaoperação da WiliLeaks e do seu fundador, Julian Assange, contra os EUA é muito mais embaraçosa para a Administração Obama do que as anteriores, sobre o Afeganistão e o Iraque. Uma vez mais, o que conta não é a substância, mas a divulgação em si mesma. A "fuga" em nada altera a nossa visão sobre a política externa americana, as crises do planeta ou os atritos entre Washington e os seus aliados. Põe em causa, pura e simplesmente, a credibilidade da diplomacia americana, incapaz de guardar os segredos.

Reinava ontem um clima de estupefacção e embaraço, particularmente visível nos Estados do Golfo. No domingo, o MNE italiano, Franco Frattini, qualificara a "fuga" como "o 11 de Setembro da diplomacia". De modo menos gongórico, o MNE sueco, Carl Bildt, declarou: "Isto vai enfraquecer a diplomacia em todo o mundo. Enfraquece a diplomacia em geral e, em primeiro lugar, a diplomacia americana. É algo que tornará o mundo menos seguro. Há necessidade de comunicações confidenciais entre os governos, (...) para gerir as crises e as situações delicadas."

A diplomacia tem duas vertentes, uma pública e outra secreta. "A diplomacia do megafone" só leva a mais conflitos e mais problemas, sei-o por experiência", concluiu Bildt, um veterano da gestão de crises.

Na esmagadora maioria, os documentos divulgados não são secretos, mas reservados ou confidenciais. O aspecto que diverte o público - anedotas ou apreciações cruéis sobre Berlusconi, Kadhafi, Karzai, Sarkozy ou Putin - é irrelevante. As chancelarias estão cheias de "telegramas" com comentários desprimorosos sobre dirigentes estrangeiros e narrações de intrigas palacianas.

"A diplomacia baseia-se na confiança e dizem-se por vezes coisas que não se repetem na presença de jornalistas", resumiu um diplomata russo.

Quebra da confiança
O que fere é a quebra de confiança, sobretudo numa região explosiva e intoxicada como o Médio Oriente. A diplomacia americana deixou de saber guardar segredos.

Quando o rei Abdullah sugere a um diplomata americano que os EUA "cortem a cabeça da serpente" [o nuclear iraniano] não pode tolerar ver as suas palavras expostas na praça pública. Ele usa, como todos os árabes, um dupla linguagem - ora fazendo em segredo aquela sugestão ora avisando Washinton de que um ataque às instalações nucleares iranianas seriam uma catástrofe geopolítica.

Os palestinianos da Fatah e os egípcios ficaram gelados ao ver nos jornais a informação de que Israel teria discutidos com eles - embora sem resultado - a hipótese de colaboração no ataque a Gaza em 2008. Os excertos publicados têm muitas outras histórias que foram reportadas por jornalistas e analistas mas que não podem aparecer em documentos com o selo do Departamento de Estado. Perguntam diplomatas e analistas: doravante, que estrangeiro conversará livremente numa embaixada americana?

Se a bisbilhotice ou certas qualificações pessoais não são relevantes, já o são as manifestações de desconfiança ou hostilidade perante aliados. Ahmet Davutoglu, ministro turco dos Negócios Estrangeiros, é qualificado num documento como um "islamista" que empurra Erdogan para uma política antiocidental. Num outro, a Turquia é acusada de cumplicidade com grupos da Al-Qaeda no Iraque, ao mesmo tempo que outra fonte dá conta de contactos e ajudas de americanos aos curdos do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK). Não são informação a alto nível, mas de origem diplomática.

Hillary Clinton é a governante mais embaraçada do mundo. Passou ontem o dia ao telefone. Tinha uma audiência com Davutoglu, que disse aos jornalistas que lhe iria pedir esclarecimentos. É também ela quem assina o documento em que diplomatas americanos são encarregados de recolher dados sobre os códigos de comunicação do secretário-geral das Nações Unidas. É um mau hábito de várias potências - mas também é hábito ser discreto.

Dilema da segurança
Todos estes documentos estão numa rede acessível a mais de dois milhões de pessoas. Depois de terem sido virulentamente criticados pela falta de partilha de dados no 11 de Setembro, os serviços de informação americanos, forças armadas e diplomacia optaram pela conexão das bases de dados. O Departamento de Estado adoptou assim um sistema de partilha da informação conhecido como "netcentric diplomacy". E, por uma estranha tradição americana, as "opiniões pessoais" dos diplomatas não são consideradas "hard intelligence" e, por isso, não são classificadas como "secretas".

A primeira reacção às operações WikiLeaks, ontem renovada, foi "restringir o acesso" a esta informação. Tanto o Pentágono como o Departamento de Estado estão perante o desafio de responder à "era digital". Analistas de segurança têm advertido sobre a vantagem de rever os critérios de classificação, de modo a salvaguardar o que é realmente secreto e aceitar uma maior circulação de informação, em benefício do público e da imprensa. A globalização e a tecnologia não voltam atrás.

Há uma distinção fundamental entre segurança nacional e informações que simplesmente emabarçam os governos. Grande parte destas acabam por ser inócuas, escrevia ontem a agência de intelligence Stratfor. "Mas alguns documentos mostram ser muito mais incendiários do que outros e provocariam uma dramática reacção internacional."

Tirando uma conclusão política, anota Der Spiegel, um dos media que publicou os materiais: "No seu conjunto, os telegramas do Médio Oriente expõem a fraqueza da superpotência. (...) Muito frequentemente, são os líderes árabes que usam os seus amigos em Washington para expandir o próprio poder." Nada é linear.

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