Entrevista Gente que conta - Otelo
por JOÃO MARCELINO
Os 35 anos do 25 de Novembro de 1975, que passam esta semana no dia seguinte à greve geral, são o pretexto para a conversa com Otelo Saraiva de Carvalho, que decorre na casa deste antigo capitão de Abril, hoje coronel na reserva. Apesar de já ter dobrado a casa dos 70, continua um homem enérgico. Tem um discurso em catadupa, no qual o "pá", de que o texto foi limpo, é usado com abundância. Uma entrevista que ajuda a perceber o romantismo de uma história ainda recente
Otelo, preocupado com a actual crise no País, ainda acredita na democracia directa, utopia que guarda desde Abril de 1974. Costuma abster-se nas eleições, por discordar da "democracia representativa burguesa", mas promete apoiar e pôr o seu voto em Manuel Alegre, nas próximas presidenciais. Soares convidou-o a aderir ao PS, lembra, e até o levaria a cabeça de lista nas legislativas. O militar, que diz só ter tido conhecimento do 25 de Novembro de madrugada, recusou o convite.
Alguma vez nestes anos, e face à qualidade da nossa vida colectiva actual, se arrependeu de ter ajudado Portugal a sair da ditadura provinciana de Salazar e Caetano?
Não, de forma alguma! Consi-dero que o 25 de Abril permitiu derrubar uma ditadura, que começou militar e que o Sala-zar transformou em fascista de modelo mussoliniano. E o 25 de Abril, derrotando essa ditadura, que durou em Portugal durante 48 anos, abriu as portas para a liberdade e para a recuperação da dignidade do povo. Mais do que isso: travou a Guerra Colonial que durava em possessões portuguesas havia já 13 anos, permitindo a descolonização e, a partir daí, o desenvolvimento do País.
As dificuldades actuais do País não lhe causam nenhum problema nesse sentido? Não o desencantam?
As dificuldades do País resultam da implantação do sistema capitalista em Portugal, fazendo parte do arco ocidental das chamadas democracias parlamentaristas, ou democracias representativas. Foi exactamente por causa disso que, durante o chamado PREC [Processo Revolucionário em Curso], eu entrei em conflito de carácter ideológico, podemos dizer assim, com os meus camaradas do MFA que comigo partilhavam o Conselho da Revolução.
Portanto, o seu caminho era outro?
De início, eu, que não percebia nada de política, era um militar que perante as circunstâncias me vi compelido a fazer o que fiz, a preparar o plano de operações e a comandar o 25 de Abril, vi-me impelido a ter que também tomar parte na política. No decurso do processo, encarei outra hipótese de le-var por diante a instauração de um regime político diferente.
Gostaria que Portugal tivesse seguido esse caminho?
Gostaria muito. Se bem que reconheça as tremendas dificuldades que iríamos encontrar pela frente para levar por diante esse projecto, de instauração de um regime de democracia directa. O Melo Antunes, por exemplo, que era o papa político do MFA, quando falei com ele sobre esse assunto...
Sucintamente, que regime seria este, essa democracia directa?
Não tenho isto bem escalpelizado, porque não existe esse regime em nenhum país do mundo. Encaro-o...
É por isso que eu lhe faço a pergunta.
E esse era o argumento dos meus camaradas - diziam: "Mas onde é que tu encontras em qualquer país do mundo esse regime?" Eu dizia: "Não encontro em nenhum, mas fazemos nós!"
Mas como é que explica isso?
Democracia, etimologicamente, é o poder do povo. Poder de povo que não existe numa democracia burguesa. A democracia burguesa resulta do poder da classe dominante. Desde 1789, com a Revolução Francesa, é assim.
Qual é o mais aproximado que encontra no mundo?
Não sei. Aquilo que poderia ter acontecido seria dentro de uma perspectiva luxemburguista, a criação de grandes assembleias, assembleias populares. Por exemplo, ao nível de freguesias, porque temos um país dividido administrativamente em freguesias, concelhos, etc...
Desculpe-me a crueza da pergunta, mas acredita nessa utopia ainda hoje?
Acredito profundamente. As pessoas têm tendência logo para dizer: "Então e querias o operário para ser primeiro-ministro?" Não! Podia ser o senhor doutor, professor, jubilado, um tipo óptimo que era escolhido pelo povo porque era o melhor! Os melhores de todos! Suponha uma área de freguesia com mil habitantes: desses mil habitantes, as pessoas conhecem-se, em assembleia podem reunir-se. Todas as pessoas que quiserem ir à assembleia vão à assembleia, discutem os problemas da comunidade e a certa altura começam a ser visíveis aquelas personalidades que, ou pela sua inteligência, pelo seu carácter...
E esse país teria um governo eleito de que forma?
De forma directa, a democracia directa! Temos de eleger uma assembleia de freguesia, de mil pessoas temos de reduzir a cinquenta, vamos a eleições!, e as pessoas lá punham o voto secreto e elegiam o fulano A, B ou C - não há partidos - para formarem a assembleia de freguesia, que passava a gerir os interesses dessa freguesia. Desses cinquenta escolhiam-se por eleição os dez melhores para uma assembleia municipal. E dentro da assembleia municipal escolher-se-ia para uma assembleia de distrito, ou nacional popular, da qual finalmente emergisse para um governo! Da base ao topo, era uma eleição directa.
Essa sua utopia não avançou, nunca avançou em nenhum país do mundo...
Mas podíamos ter nós implantado!
... A verdade é que 35 anos depois, organizámos agora esta reunião importante da NATO, por onde até passou o Presidente da Rússia. Va-mos assistir também esta semana a uma greve geral que protesta contra as condições de vi-da, temos 10,9% de desempregados, cerca de 600 mil pessoas. O País vive uma situação caótica, e eu repito a questão inicial: como é que olha esta realidade à luz dos ideais que o animaram nesses longínquos anos de 74 e 75?
De uma forma extremamente pessimista. Era aquilo que eu previa, dada a chantagem que os Estados Unidos e o arco ocidental europeu fizeram relativamente a Portugal na pessoa do Melo Antunes, enquanto ele era ministro dos Negócios Estrangeiros. Hoje há documentos desclassificados, os da CIA não estão todos, mas os do Gerald Ford estão, e podemos verificar que em Maio de 75 o Melo Antunes foi convocado para Munique, para uma conversação com o presidente dos EUA e com o Henry Kissinger, em que lhe foi imposta por chantagem condição de carácter decisivo para o futuro do País.
Essa chantagem foi exercida como?
O Gerald Ford e o Kissinger disseram ao Melo Antunes: "Se vocês continuarem em Portugal nessa perspectiva da revolução socialista, com o Partido Comunista, um partido ortodoxo ligado à União Soviética, já no poder, Portugal, na situação estratégica que tem face ao Atlântico, vai transformar-se num pólo da União Soviética. Nós não podemos permitir isso! Já conversámos com esta gente toda, desde o Reino Unido até à Espanha, passando pela Holanda, a França, Alemanha, etc. - exercemos sobre Portugal um boicote económico total. E vocês perdem as colónias..."
Isso foi-lhe dito pessoalmente por Melo Antunes?
Sim, sim! O Melo Antunes veio com esse recado! "Se vocês regressarem àquilo que foi o vosso programa político do MFA anunciado em Abril de 74 e implantarem a democracia representativa de modelo ocidental, têm todo o nosso apoio." E o Melo Antunes disse: "É uma responsabilidade tremenda."
É aí que nasce o 25 de Novembro?
Sim, está aí a origem do 25 de Novembro. Quando discuti com o Melo Antunes a questão de um poder de democracia directa ou um poder de democracia representativa burguesa, como aquela que existe hoje no País, segundo o modelo ocidental, o Melo Antunes disse-me: "Vamos lá ver. Talvez a gente consiga conciliar..."
Não encontra nenhuma virtualidade no caminho da democracia representativa que o País percorreu?
Este tipo de democracia representativa aqui em Portugal - e eu tinha essa sensibilidade -, criando partidos que não existiam, produziria o que se verifica hoje que é a partidocracia! O povo. A oposição está confortavelmente instalada - o BE e o PC, porque sabe que nunca serão poder, têm a situação cómoda de protestarem contra tudo! Os dois partidos que lutam pelo poder e que têm acesso a ele, com a achega do pequeno CDS, lutam pelo poder e, chegando a ele, tendem a distribuir as benesses.
Que saída vê para esse retrato que faz do País?
Nenhuma. A não ser por imposição de um presidente que tivesse a força, a moral e a capacidade de cortar aos partidos o poder se não é para ser exercido de forma a elevar - aquilo que era a grande perspectiva do 25 de Abril - o nível social, cultural, económico do povo.
E é isso que espera da candidatura que apoia de Manuel Alegre se fosse eleito?
Manuel Alegre vai ficar muito condicionado por uma falta de conhecimento profundo que tem da economia. Quando foi da ditadura militar após 1926, os militares que tomaram conta do poder não percebiam patavina de economia - foi por isso que tiveram a maior autoridade de então da economia e finanças em Portugal, Oliveira Salazar. E a partir daí tramaram o País. Eu julgo que Alegre não terá a bagagem de conhecimento e de capacidade de poder económico para poder gerir bem esta situação, que é dramática.
Cavaco Silva tem essa capacidade?
Cavaco é um tecnocrata, tem esse conhecimento e joga com ele. Mas falta ao Cavaco - ele está a procurar transformar-se, pelo menos aparentemente - aquilo que tem o Alegre, o humanismo!
Neste momento, precisávamos de um governo de salvação nacional?
Julgo que era fundamental. Se houvesse o milagre de os partidos, em conjunto, encontrarem um governo de salvação nacional que agarrasse o País...
Mas como é que isso é possível com o tal quadro político que tanto desvaloriza e critica?
É por isso que eu falo em milagre! Se houvesse um milagre que levasse os partidos a abdicar dos interesses partidários, e pensar na salvação do País.
Veja aqui o vídeo da entrevista a Otelo Saraiva de Carvalho:
Alguma vez nestes anos, e face à qualidade da nossa vida colectiva actual, se arrependeu de ter ajudado Portugal a sair da ditadura provinciana de Salazar e Caetano?
Não, de forma alguma! Consi-dero que o 25 de Abril permitiu derrubar uma ditadura, que começou militar e que o Sala-zar transformou em fascista de modelo mussoliniano. E o 25 de Abril, derrotando essa ditadura, que durou em Portugal durante 48 anos, abriu as portas para a liberdade e para a recuperação da dignidade do povo. Mais do que isso: travou a Guerra Colonial que durava em possessões portuguesas havia já 13 anos, permitindo a descolonização e, a partir daí, o desenvolvimento do País.
As dificuldades actuais do País não lhe causam nenhum problema nesse sentido? Não o desencantam?
As dificuldades do País resultam da implantação do sistema capitalista em Portugal, fazendo parte do arco ocidental das chamadas democracias parlamentaristas, ou democracias representativas. Foi exactamente por causa disso que, durante o chamado PREC [Processo Revolucionário em Curso], eu entrei em conflito de carácter ideológico, podemos dizer assim, com os meus camaradas do MFA que comigo partilhavam o Conselho da Revolução.
Portanto, o seu caminho era outro?
De início, eu, que não percebia nada de política, era um militar que perante as circunstâncias me vi compelido a fazer o que fiz, a preparar o plano de operações e a comandar o 25 de Abril, vi-me impelido a ter que também tomar parte na política. No decurso do processo, encarei outra hipótese de le-var por diante a instauração de um regime político diferente.
Gostaria que Portugal tivesse seguido esse caminho?
Gostaria muito. Se bem que reconheça as tremendas dificuldades que iríamos encontrar pela frente para levar por diante esse projecto, de instauração de um regime de democracia directa. O Melo Antunes, por exemplo, que era o papa político do MFA, quando falei com ele sobre esse assunto...
Sucintamente, que regime seria este, essa democracia directa?
Não tenho isto bem escalpelizado, porque não existe esse regime em nenhum país do mundo. Encaro-o...
É por isso que eu lhe faço a pergunta.
E esse era o argumento dos meus camaradas - diziam: "Mas onde é que tu encontras em qualquer país do mundo esse regime?" Eu dizia: "Não encontro em nenhum, mas fazemos nós!"
Mas como é que explica isso?
Democracia, etimologicamente, é o poder do povo. Poder de povo que não existe numa democracia burguesa. A democracia burguesa resulta do poder da classe dominante. Desde 1789, com a Revolução Francesa, é assim.
Qual é o mais aproximado que encontra no mundo?
Não sei. Aquilo que poderia ter acontecido seria dentro de uma perspectiva luxemburguista, a criação de grandes assembleias, assembleias populares. Por exemplo, ao nível de freguesias, porque temos um país dividido administrativamente em freguesias, concelhos, etc...
Desculpe-me a crueza da pergunta, mas acredita nessa utopia ainda hoje?
Acredito profundamente. As pessoas têm tendência logo para dizer: "Então e querias o operário para ser primeiro-ministro?" Não! Podia ser o senhor doutor, professor, jubilado, um tipo óptimo que era escolhido pelo povo porque era o melhor! Os melhores de todos! Suponha uma área de freguesia com mil habitantes: desses mil habitantes, as pessoas conhecem-se, em assembleia podem reunir-se. Todas as pessoas que quiserem ir à assembleia vão à assembleia, discutem os problemas da comunidade e a certa altura começam a ser visíveis aquelas personalidades que, ou pela sua inteligência, pelo seu carácter...
E esse país teria um governo eleito de que forma?
De forma directa, a democracia directa! Temos de eleger uma assembleia de freguesia, de mil pessoas temos de reduzir a cinquenta, vamos a eleições!, e as pessoas lá punham o voto secreto e elegiam o fulano A, B ou C - não há partidos - para formarem a assembleia de freguesia, que passava a gerir os interesses dessa freguesia. Desses cinquenta escolhiam-se por eleição os dez melhores para uma assembleia municipal. E dentro da assembleia municipal escolher-se-ia para uma assembleia de distrito, ou nacional popular, da qual finalmente emergisse para um governo! Da base ao topo, era uma eleição directa.
Essa sua utopia não avançou, nunca avançou em nenhum país do mundo...
Mas podíamos ter nós implantado!
... A verdade é que 35 anos depois, organizámos agora esta reunião importante da NATO, por onde até passou o Presidente da Rússia. Va-mos assistir também esta semana a uma greve geral que protesta contra as condições de vi-da, temos 10,9% de desempregados, cerca de 600 mil pessoas. O País vive uma situação caótica, e eu repito a questão inicial: como é que olha esta realidade à luz dos ideais que o animaram nesses longínquos anos de 74 e 75?
De uma forma extremamente pessimista. Era aquilo que eu previa, dada a chantagem que os Estados Unidos e o arco ocidental europeu fizeram relativamente a Portugal na pessoa do Melo Antunes, enquanto ele era ministro dos Negócios Estrangeiros. Hoje há documentos desclassificados, os da CIA não estão todos, mas os do Gerald Ford estão, e podemos verificar que em Maio de 75 o Melo Antunes foi convocado para Munique, para uma conversação com o presidente dos EUA e com o Henry Kissinger, em que lhe foi imposta por chantagem condição de carácter decisivo para o futuro do País.
Essa chantagem foi exercida como?
O Gerald Ford e o Kissinger disseram ao Melo Antunes: "Se vocês continuarem em Portugal nessa perspectiva da revolução socialista, com o Partido Comunista, um partido ortodoxo ligado à União Soviética, já no poder, Portugal, na situação estratégica que tem face ao Atlântico, vai transformar-se num pólo da União Soviética. Nós não podemos permitir isso! Já conversámos com esta gente toda, desde o Reino Unido até à Espanha, passando pela Holanda, a França, Alemanha, etc. - exercemos sobre Portugal um boicote económico total. E vocês perdem as colónias..."
Isso foi-lhe dito pessoalmente por Melo Antunes?
Sim, sim! O Melo Antunes veio com esse recado! "Se vocês regressarem àquilo que foi o vosso programa político do MFA anunciado em Abril de 74 e implantarem a democracia representativa de modelo ocidental, têm todo o nosso apoio." E o Melo Antunes disse: "É uma responsabilidade tremenda."
É aí que nasce o 25 de Novembro?
Sim, está aí a origem do 25 de Novembro. Quando discuti com o Melo Antunes a questão de um poder de democracia directa ou um poder de democracia representativa burguesa, como aquela que existe hoje no País, segundo o modelo ocidental, o Melo Antunes disse-me: "Vamos lá ver. Talvez a gente consiga conciliar..."
Não encontra nenhuma virtualidade no caminho da democracia representativa que o País percorreu?
Este tipo de democracia representativa aqui em Portugal - e eu tinha essa sensibilidade -, criando partidos que não existiam, produziria o que se verifica hoje que é a partidocracia! O povo. A oposição está confortavelmente instalada - o BE e o PC, porque sabe que nunca serão poder, têm a situação cómoda de protestarem contra tudo! Os dois partidos que lutam pelo poder e que têm acesso a ele, com a achega do pequeno CDS, lutam pelo poder e, chegando a ele, tendem a distribuir as benesses.
Que saída vê para esse retrato que faz do País?
Nenhuma. A não ser por imposição de um presidente que tivesse a força, a moral e a capacidade de cortar aos partidos o poder se não é para ser exercido de forma a elevar - aquilo que era a grande perspectiva do 25 de Abril - o nível social, cultural, económico do povo.
E é isso que espera da candidatura que apoia de Manuel Alegre se fosse eleito?
Manuel Alegre vai ficar muito condicionado por uma falta de conhecimento profundo que tem da economia. Quando foi da ditadura militar após 1926, os militares que tomaram conta do poder não percebiam patavina de economia - foi por isso que tiveram a maior autoridade de então da economia e finanças em Portugal, Oliveira Salazar. E a partir daí tramaram o País. Eu julgo que Alegre não terá a bagagem de conhecimento e de capacidade de poder económico para poder gerir bem esta situação, que é dramática.
Cavaco Silva tem essa capacidade?
Cavaco é um tecnocrata, tem esse conhecimento e joga com ele. Mas falta ao Cavaco - ele está a procurar transformar-se, pelo menos aparentemente - aquilo que tem o Alegre, o humanismo!
Neste momento, precisávamos de um governo de salvação nacional?
Julgo que era fundamental. Se houvesse o milagre de os partidos, em conjunto, encontrarem um governo de salvação nacional que agarrasse o País...
Mas como é que isso é possível com o tal quadro político que tanto desvaloriza e critica?
É por isso que eu falo em milagre! Se houvesse um milagre que levasse os partidos a abdicar dos interesses partidários, e pensar na salvação do País.
Veja aqui o vídeo da entrevista a Otelo Saraiva de Carvalho:
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