O
ESTADO NOVO DE SALAZAR, NA MEMÓRIA DE QUEM O VIVEU
A
todos os meus amigos com os votos de um bom Domingo.
Só
os portugueses e as portuguesas com mais ou menos 15 anos no dia 25 de Abril de
1974, hoje a rondarem os 65, podem ter memória crítica de algumas
particularidades dos últimos estertores do Estado Novo, que viram cair. Rapazes
e raparigas com menos idade, ou seja, as crianças desse tempo, talvez se
lembrem de um pormenor ou outro. Assim sendo, torna-se evidente que a grande
maioria dos nossos adultos no activo pouco ou nada sabem de um regime que nos
privou de todas as formas de liberdade, torturou muitos de nós, durante quase
meio século e que caiu de podre no dia em que os cravos floresceram nas
espingardas dos soldados.
Nos
anos de 1930 e 1940, os das duas primeiras décadas de consolidação do Estado
Novo, Portugal viveu em situação de ditadura, distinguindo apoiantes do novo
regime e oposicionistas, de entre os quais se evidenciaram, por serem
publicamente conhecidos, os que “se metiam na política”, localmente referidos
como sendo “os do reviralho”. Eram os da chamada oposição democrática,
consentida por Salazar, com destaque para os do Movimento de Unidade
Democrática (MUD). Criado em 1945, foi extinto três anos depois, em virtude do
grande apoio popular que registou, agrupando muitos opositores até então
isolados, entre os quais muitos intelectuais e profissionais liberais.
Outros
opositores, que quase ninguém conhecia, militando na clandestinidade pelo
Partido Comunista, eram activamente perseguidos, primeiro pela PVDE (Política
de Vigilância e Defesa do Estado), entre 1933 e 1945, e, depois, pela sua
substituta PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). A estes
opositores, os “pides” deitavam-lhes a mão, levavam-nos para Lisboa, onde os
interrogavam, brutalizavam, guardando-os depois, pelo tempo que entendessem, e,
em alguns casos, assassinavam. Para os localizarem e denunciarem havia os
informadores, também referidos por “bufos”, uns conhecidos, outros, não, pelo
que se dizia que as mesas dos Cafés, os bancos do jardim, as paredes de todo o
lado e até as pedras da caçada tinham olhos e ouvidos.
Para
além das restrições à liberdade e da censura, fez-se sentir, também aqui, o
decreto 27 003, de 14 de Setembro de 1936, que determinava: «Para admissão a
concurso nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou
acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência
voluntária, em relação aos lugares do estado e serviços autónomos, bem como dos
corpos e corporações administrativos, é exigido o seguinte documento com
assinatura reconhecida: Declaro por minha honra que estou integrado na ordem
social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do
comunismo e de todas as ideias subversivas». E, mais adiante: «Os directores e
chefes dos serviços serão demitidos, reformados ou aposentados compulsivamente
sempre que algum dos respectivos funcionários ou empregados professe doutrinas
subversivas, e se verifique que não usaram da sua autoridade ou não informaram
superiormente».
Embora
na letra da Constituição de 1933, figurasse o princípio da igualdade entre
cidadãos perante a lei, o Estado Novo considerava a mulher como mãe,
dona-de-casa e, em quase tudo, submissa ao marido. A lei portuguesa de então,
designava o marido como chefe de família, sendo reservado à mulher o governo da
casa, o que se traduzia pela imposição dos trabalhos domésticos como obrigação,
não tendo os mesmos direitos na educação dos filhos. Não tinha direito de voto,
não podia ascender a determinadas chefias nem exercer cargos na magistratura,
na diplomacia e na política. Sendo casadas, as nossas mulheres perdiam o
direito a intervir nas suas propriedades, não podiam viajar para fora do país
sem autorização dos maridos e não podiam trabalhar sem autorização destes. O
marido podia dirigir-se ao empregador declarar não autorizar a mulher a
trabalhar, o que implicava o seu imediato despedimento.
Em
muitos hospitais as enfermeiras podiam ser impedidas de casar. Se casassem,
podiam ser obrigadas a abandonar a profissão. As professoras tinham de pedir
autorização para casar, o que só era permitido se o noivo satisfizesse
determinadas condições, autorização publicada e em Diário da República O
divórcio era proibido, devido ao acordo estabelecido com a Concordata de 1940,
numa submissão do Estado à Igreja Católica. Assim, todas as crianças nascidas
de uma nova relação, posterior casamento, eram consideradas ilegítimas, não
podendo ter o nome do pai, ou seja, o do companheiro.
Na
orientação ideológica antiliberal e de cariz católica do ditador, a existência
da mulher confundia-se com a da família, estando-lhe reservado o espaço
doméstico. A Obra das Mães pela Educação Nacional, organização feminina do
Estado Novo, criada em 1936, tinha por objetivo “estimular a acção educativa da
família e assegurar a cooperação entre esta e a escola nos termos da
Constituição” de 1933.
Nascida
em 1912, como suplemento feminino do jornal “O Século” a revista semanal
“Mulher – Modas & Bordados” dirigida nos primeiros tempos a uma pretensa
elite feminina, fornecia-lhe conselhos nos domínios da moda, da culinária, das
boas-maneiras e da beleza. Mostrou, porém, alguma preocupação de valorização da
mulher, testemunhada pela publicação regular de sonetos da grande poetisa
alentejana, Florbela Espanca (1894-1930), uma das primeiras mulheres a
frequentar o Liceu Masculino André de Gouveia, onde permaneceu até 1912. Foi,
porém, com Maria Lamas (1893-1983), opositora ao regime e feminista, na
direcção desta revista que a luta contra a secundarização da mulher se fez
sentir, não só em Évora, onde tinha ligações familiares, como no país.
Depois
de duas décadas de confronto com o liberalismo e o republicanismo, a chamada
pax salazarista proporcionou à Igreja (grandemente afectada durante a Primeira
República) um terreno propício à sua reimplantação e reestruturação interna.
Nestes propósitos, assumiu papel fundamental o então Patriarca de Lisboa, Dom
Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977), dirigindo a Igreja Católica Portuguesa
durante o Estado Novo. Elevado ao cardinalato, em 1929, pelo Papa Pio XI, foi
amigo íntimo e companheiro de Salazar (militante católico nos tempos da
Primeira República), no Centro Académico da Democracia Cristã, em Coimbra.
Com
a subida de Salazar ao poder, o cardeal Cerejeira pôde garantir, à Igreja,
potecção, respeito e liberdade de acção. Estava na sua mente recuperar e
salvaguardar os privilégios do catolicismo, como Igreja do Estado, afastados
pela Primeira República, tendo tido papel fundamental na assinatura da
Concordata com a Santa Sé, em 1940, na criação da Acção Católica Portuguesa,
visando a “recristianização” da sociedade, na obrigatoriedade do ensino
religioso, na abertura de novos seminários e casas religiosas, bem como no
desenvolvimento da imprensa católica.
Em
1936, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente
chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da escola no controlo
ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no
culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. O fervor
patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo
estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na
História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então
com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e
mulheres do futuro.
Nestes
anos, o ensino obrigatório ainda terminava com o exame da 3ª classe (3º ano,
como agora se diz), certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, exigível, por
exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no
comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até,
para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que, o cidadão comum
necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e
a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação
mínima vigorou até 1956. A partir de então, a escolaridade aumentou para 4
anos, apenas para os rapazes. Só quatro anos depois, esta obrigatoriedade foi
decretada para as raparigas.
Na
Escola Primária, a pedagogia estava na ponta da régua, versão escolar da
tradicional palmatória ou menina de cinco olhos. Com algumas professoras, as
reguadas estalavam nas mãos das crianças “por dá cá aquela palha”, quer por
motivos de disciplina, quer por erros nos ditados, nas contas e em quaisquer
outras matérias.
À
margem da Escola Primária havia as chamadas “Escolas Incompletas”, criadas em
1930, mais tarde designadas “postos escolares”, com o propósito de combater o
analfabetismo no seio de populações sem escola nem condições mínimas de fixar
professores. Aqui o ensino era ministrado por “regentes escolares”. Na
imensamente maioria mulheres, ganhavam metade do ordenado de um professor,
bastava que possuíssem a 4ª, que demonstrarem ter bom comportamento moral e
adesão ao regime e eram, de preferência, oriundas dos próprios locais.
A
análise histórica da documentação permite verificar que, nesses anos, os
professores, diplomados pelas Escolas Normais, foram sendo substituídos pelos
regentes escolares, em especial nas aldeias e na periferia das cidades. A
escolaridade obrigatória, como se disse, baixara para a 3.ª classe e as
crianças estavam preparadas para trabalhar e ouvir o sermão do senhor padre aos
Domingos.
No
discurso de Salazar, proferido em 12 de maio de 1935, na sede da Liga 28 de
Maio, em Lisboa, Salazar disse: Oiço muitas vezes dizer aos homens da minha
aldeia, «Gostava que os pequenos soubessem ler para os tirar da enxada». E eu
gostaria bem mais que eles dissessem: «Gostaria que os pequenos soubessem ler,
para poderem tirar melhor rendimento da enxada».
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