PS recusa integrar comissão dos 50 anos do 25 de Novembro e terá programa próprio
Todo
o processo que culminou no 25 de Novembro foi construído por Mário Soares, o PS
e a ala militar moderada do Grupo dos Nove. Sá Carneiro e Freitas do Amaral
tiveram papéis secundários. Não estavam no país e recusaram a luta armada.
Manhã
de 25 de Novembro de 1975. Francisco Sá Carneiro aterra em Bona, capital da
República Federal da Alemanha, para visitar o Presidente Helmut Schmidt e o
chanceler Willy Brandt, numa tentativa de competir com Mário Soares no mundo da
social-democracia europeia. Ao fim da tarde, o líder do PPD é surpreendido com
as notícias da televisão alemã, onde aparece o chefe dos comandos, Jaime Neves,
em cima de uma chaimite do Exército português. Embora vá recebendo informações
da embaixada portuguesa em Bona, transmitidas via telegrama e telex, a comitiva
não se apercebe logo da gravidade dos acontecimentos, conta Maria João Avillez
no livro “Solidão e Poder”.
Iniciara-se
o esperado golpe revolucionário em Portugal: pelas 5h30 da manhã, Jaime Serra,
membro do Comité Central do PCP, deu ordem para avançar ao major Luís Pessoa,
chefe de gabinete do comandante Almada Contreiras, do Serviço Diretor e de
Coordenação da Informação das Forças Armadas. De imediato, Pessoa transmite a
senha a um sargento dos paraquedistas, que por sua vez dá início às
movimentações — uma informação desconhecida durante 48 anos e revelada no ano
passado por Vasco Lourenço ao Expresso, que possui um testemunho do major a
narrar os factos. De madrugada, os páras tomam várias bases e prendem os
respetivos comandantes. Perante as movimentações, aciona-se o contragolpe que
os militares moderados do Grupo dos Nove tinham planeado, chefiado pelo
tenente-coronel Ramalho Eanes, sob tutela de Vasco Lourenço, graduado em
brigadeiro, em ligação com o Presidente da República, o general Costa Gomes.
Mesmo com uma crise aguda em Lisboa, Sá Carneiro decide ficar na Alemanha. Só
regressa no dia 28, ao Porto, à boleia de um caça militar de três lugares,
disponibilizado pelo ministro da Defesa alemão Georg Leber, uma vez que os
aeroportos portugueses estavam fechados devido ao estado de sítio.
Diogo
Freitas do Amaral, líder do CDS, passa o dia decisivo em trânsito para Roma,
onde participa no Congresso da União Mundial das Democracias Cristãs. A caminho
do aeroporto, ouve que o moderado Vasco Lourenço vai substituir o esquerdista
radical Otelo Saraiva de Carvalho no comando da Região Militar de Lisboa. As
notícias soam-lhe bem. Os revolucionários parecem perder força. Mas quando
chega ao hotel na capital italiana, virou tudo do avesso. Um empregado da
receção passa-lhe uma mensagem: “Favor telefonar com urgência para Lisboa. Está
em curso um golpe militar iniciado pelos paraquedistas de Tancos e apoiado pela
FUR [Frente de Unidade Revolucionária, uma união entre o PCP e os partidos da
extrema-esquerda].” Freitas do Amaral só regressa a Lisboa a 29 de novembro,
quando a situação já está resolvida.
Mário
Soares, secretário-geral do PS, acompanha tudo de perto. Decide manter-se em
Lisboa ao longo do dia 25, até que as coisas fiquem mais claras. No Estoril, em
casa de Victor Cunha Rego, vê a declaração revolucionária do militar
esquerdista Duran Clemente ser cortada na RTP — tomada pelos revoltosos — e
substituída por uma comédia. Só viaja para o Porto à noite — não venha a dar-se
uma reviravolta, porque nestas coisas nunca se sabe —, onde chega perto da uma
da manhã. Segue para o Quartel-General da Região Militar Norte, onde estão os
generais Pires Veloso e Lemos Ferreira a acompanhar as operações e dispondo dos
aviões da Força Aérea concentrados em Cortegaça, concelho de Ovar. No dia 26,
com o RALIS afeto à extrema-esquerda neutralizado, os comandos de Jaime Neves
subjugam o Regimento de Lanceiros da Polícia Militar, a única unidade cujo
comandante, Mário Tomé (futuro dirigente da UDP), não cumpre a ordem de se
apresentar em Belém. Morrem três homens. Mas teria havido mais sangue se Neves
não tivesse mão nos seus soldados.
Antes
disso, pelas cinco da tarde do dia 25, Jaime Serra, do PCP, já tinha dado ordem
ao major Pessoa para os paraquedistas recuarem. Há tropas que choram.
Aparentemente, não havia um plano articulado nem unidade de comando. Otelo não
está no COPCON e Varela Gomes, próximo do PCP, não se consegue fazer obedecer.
Os fuzileiros, a única força credível sob influência do PCP, nunca chegam a
sair do Alfeite. Os civis comunistas, mobilizados aos milhares, vêm abortados
os ímpetos de insurreição e são instruídos a regressar aos Centros de Trabalho.
Frustradíssima, Zita Seabra manda para casa os estudantes comunistas que
liderava e que mantinha em estado de alerta. Ao fim de oito meses acaba-se o
Processo Revolucionário em Curso (PREC). Portugal pode prosseguir o seu caminho
para se tornar numa democracia ocidental.
Soares,
o inimigo número um do PCP
No
início dos anos 80, além de Amália e de Eusébio, Mário Soares era dos raros
portugueses mais ou menos famosos no mundo, mas ser reconhecido por um turista
polaco em pleno Egito, quando fazia um cruzeiro no rio Nilo, era surpreendente.
Durante esse passeio de barco, um homem aborda-o em francês, abraça-o
“comovido” e diz-lhe que ele é “um herói” para muitos polacos, contou Mário
Soares no livro de entrevistas a Maria João Avillez. O turista explicou-lhe: “A
televisão polaca todos os dias o apresenta como o inimigo por excelência da
revolução e entoa loas a Cunhal. Percebemos que você é contra o sistema
comunista e que o evitou em Portugal. Por isso o admiramos...”
Os
pressupostos da anedota de Soares, contada com a sua dose de conhecido
narcisismo, seriam confirmados pelo seu maior rival, Álvaro Cunhal: “O PS
apontava o PCP não só como o principal inimigo do PS mas inimigo da liberdade,
da democracia, do povo, do país”, constatou o líder comunista histórico no seu
livro “A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril”, escrito no final dos anos
90, onde contraria a narrativa dominante sobre o 25 de Novembro. A par de um
PPD que considera aliado da extrema-direita, para Cunhal “o PS tornou-se
abertamente o campeão da desestabilização, do anticomunismo e do confronto”.
Para
o comunista, o seu antigo aluno no Colégio Moderno encarnava “a
contrarrevolução”, era o menchevique que lutava para ganhar pela primeira vez
aos bolcheviques, como descreveu na sua autobiografia “Foi Assim” a antiga
dirigente comunista Zita Seabra, ex-PSD e hoje próxima da Iniciativa Liberal:
“Álvaro Cunhal, e nós com ele, tinha um sentimento de ódio profundo para com
Mário Soares, mais do que para com qualquer político de direita. Ele fez frente
ao PCP com todos os meios ao seu alcance: aliando-se aos militares mais
democratas e retirando-os da nossa influência, batendo-se sempre por eleições
livres, fazendo o povo sair à rua quando era necessário e aliando todas as
forças políticas à sua direita, civis e militares, colocando-os todos na rua
contra nós.”
Mais
do que todos os outros protagonistas políticos do pós-25 de Abril, Mário Soares
e os militares moderados do Grupo dos Nove constituíram os pilares da “muralha
de aço” contra o “companheiro Vasco” e a tentativa de sovietizar o país. Ao
mesmo tempo que derrotaram a esquerda revolucionária, também ajudaram a evitar
que a “direita musculada” ou a extrema-direita vingassem com uma “pinochetada”,
como se dizia então.
Agora,
passados 49 anos sobre o Verão Quente, os partidos de direita, sob proposta do
CDS e da Iniciativa Liberal, conseguiram elevar a evocação do contragolpe de 25
de Novembro a evento solene no Parlamento, equivalente às comemorações do 25 de
Abril, com sessão anual e a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo
de Sousa — que viveu e analisou intensamente os mesmos acontecimentos no
Expresso e em livros. O Governo prometeu uma comissão para as comemorações dos
50 anos em 2025, e o CDS, o PSD, o Chega e a Iniciativa Liberal fazem questão
de celebrar a vitória das forças democráticas sobre o bolchevismo, quando a
ação política foi sobretudo liderada pelo PS e em cujo processo os seus chefes
— Emídio Guerreiro e Sá Carneiro no PPD e Freitas do Amaral no CDS –
desempenharam papéis relativamente secundários.
O
PS votou contra a cerimónia, mas participa nas comemorações. O Bloco de
Esquerda e o PCP não tinham confirmado a participação até ao fecho da Revista
E. A Associação 25 de Abril, liderada por Vasco Lourenço — que teve um papel
determinante em todos estes acontecimentos —, pôs-se de fora da cerimónia,
alegando que “a História é a História” e “não pode ser deturpada ao sabor da
vontade de qualquer conjuntural detentor do poder”.
No
projeto de deliberação a defender a sessão, uma velha ambição do CDS, Paulo
Núncio, líder parlamentar democrata-cristão, escreveu que “ocuparam um lugar de
destaque, nesta data, o general Ramalho Eanes e Jaime Neves, cuja coragem e
determinação foram decisivas para travar o processo revolucionário, e os
líderes de então do PS, PSD e CDS, pelo seu compromisso inquebrantável com os
valores da liberdade e da democracia”. A Iniciativa Liberal apresentou um texto
mais elaborado, que dá de facto mais relevo a Mário Soares na vitória contra o
PCP e também sublinha que foi igualmente evitado um golpe de extrema-direita.
Todo este processo foi complexo do ponto de vista político e militar e não é
fácil simplificá-lo.
Sá
Carneiro descrente e ausente
Sá
Carneiro estava doente e deprimido a 11 de Março de 1975, quando a revolução
deu um enorme salto à esquerda com a derrota do golpe de direita do general
António de Spínola e o desencadear do PREC. Pela primeira vez na sua vida, o
líder do PPD terá almoçado de roupão, como descreve Miguel Pinheiro na
biografia de Francisco Sá Carneiro: “Sentia-se completamente derrotado e achava
que tinha ficado sem saída.” Repetia a toda a gente: “Estamos entregues aos
comunas.” Não escondia que pensava fugir para o Brasil. Fora de jogo por
doença, a necessitar de uma intervenção cirúrgica desde o início de 1975, Sá
Carneiro reagiu tarde contra a unicidade sindical, que se transformou numa luta
dos socialistas; não estava em Portugal no decisivo comício da Alameda convocado
por Mário Soares, que mudou a perceção sobre a correlação de forças em relação
aos comunistas; acompanhou o PREC à distância entre Londres e o Sul de Espanha;
e só regressou à liderança do PPD no fim de setembro, quando recuperou de uma
longa convalescença.
Do
outro lado, Mário Soares desdobrava-se numa ação política intensa, movido por
um otimismo eventualmente inconsciente: “Nunca me convenci de que o PS poderia
perder. De vez em quando, a Maria de Jesus dizia-me que ainda voltaríamos ao
exílio. Por brincadeira, respondia-lhe que só à força, sem, contudo, nunca ter
acreditado nessa hipótese!”, disse a Maria João Avillez.
Durante os meses em que Sá Carneiro esteve fora do país, a liderança do PPD foi assumida pelo velho resistente antifascista Emídio Guerreiro de forma equívoca. O primeiro encontro que marcou foi com Álvaro Cunhal, não tivesse Marcelo Rebelo de Sousa e Sottomayor Cardia, do PS, arranjado uma reunião à pressa com Mário Soares para o sinal político não ser mal interpretado; Pedro Roseta, o ideólogo do partido, andou a explicar às bases que o líder não era leninista só por admirar a figura histórica de Lenine; e o PPD manteve-se no IV Governo Provisório ao lado do PCP, quando o PS já saíra em rutura depois do caso “República”, quando o jornal foi tomado por comunistas.
Apesar
de tudo, quando saiu o Documento dos Nove, a 7 de agosto, Emídio Guerreiro
aderiu ao texto do major Melo Antunes, intelectual e líder político da ala
moderada do Conselho da Revolução, que respondia a outro manifesto da
extrema-esquerda do COPCON, comandado por Otelo, no sentido da radicalização
revolucionária. Foi um momento decisivo. Os moderados marcaram posição face aos
“gonçalvistas” do PCP — Vasco Gonçalves era o primeiro-ministro da revolução —
e aos “copconistas” de Otelo, que naqueles meses mencionara a possibilidade de
fuzilar a reação no Campo Pequeno. Com a sua intuição, Mário Soares aderiu de
imediato ao manifesto, mesmo sem concordar com a “terminologia intragável” de
“marxismo de cartilha” do texto dos Nove. O socialista era pragmático:
“Simplesmente, foi-nos útil naquela altura. Era preciso dividir um MFA
seguidista do PCP e, para isso, o PS aliou-se com quem combatia os nossos
adversários”, afirmou a Avillez.
Sá
Carneiro não. O fundador do PPD não possuía o mesmo espírito tático e rejeitava
o Documento dos Nove, sem perceber a importância que os autores iam ter na
derrota do processo revolucionário. “Queria manter-se afastado de todos os
militares, sem exceção”, escreve Miguel Pinheiro. Soares, pelo contrário,
cultivava essa proximidade e começou a almoçar regularmente no restaurante O
Chocalho, em Santos, com membros dos Nove. Para Sá Carneiro, “a ação dos
partidos não devia estar dependente de movimentações dos militares, fossem eles
mais ou menos democratas. Se o poder civil aceitasse uma subordinação ao MFA,
seria apenas o começo de uma ‘nova ditadura’”.
Quando
regressou a Portugal, em setembro de 1975, Sá Carneiro teve um primeiro
encontro com Mário Soares numa casa vazia no bairro da Estrela, em Lisboa.
Ouviu o socialista falar das dificuldades da luta contra o PCP, mas nem chegou
a sentar-se. Acusou Soares de cumplicidade: “Em parte, a culpa do que ocorreu
foi sua. Contemporizou até demasiado tarde com os comunistas e com a
revolução!” Estiveram apenas 11 minutos reunidos.
O
líder do PPD, escreve o seu biógrafo, “sabia que, na sua ausência, depois do 11
de Março e durante o Verão Quente, o PS tinha-se tornado no símbolo da luta
pela democracia”. Tentou que isso mudasse, mas apenas o conseguiu
verdadeiramente no Norte, onde o PPD organizou grandes manifestações no Porto,
tendo numa delas havido mesmo acontecimentos trágicos, com mais de 70 feridos
em confrontos com a esquerda revolucionária. O CDS, por sua vez, logrou encher
o Estádio das Antas, meses depois de ter sofrido o cerco ao congresso que em
janeiro de 1975 realizara no Palácio de Cristal.
PS
arma milícias. PPD e CDS recusam as G-3
O
país estava cada vez mais dividido. No Sul, o PCP e a extrema-esquerda
dominavam a cintura industrial de Lisboa, o Alentejo e o Ribatejo, onde
avançavam as ocupações selvagens de propriedades e empresas. No Norte, a Igreja
Católica assumia uma oposição feroz ao PCP, com declinações para a
extrema-direita no cónego Melo, de Braga, que patrocinava o terrorismo de
movimentos como o Maria da Fonte, com ligações ao ELP (Exército de Libertação
de Portugal, onde pontuavam ex-pides), e o MDLP (Movimento Democrático de
Libertação de Portugal, liderado por Spínola, que operava a partir de Espanha),
que punham bombas em alvos selecionados e incendiavam, assaltavam e destruíam
dezenas de sedes do Partido Comunista e do MDP/CDE.
Com
o poder na rua e indisciplina nas Forças Armadas, uma psicose golpista assola o
país. Ia haver um golpe, só não se sabia quando nem de quem seria a iniciativa:
se dos esquerdistas, se dos comunistas, se da extrema-direita, se dos
moderados. O Presidente da República, Costa Gomes, ia fazendo saber que
avançaria com a máxima força contra os primeiros a abrir as hostilidades. A
partir do verão, o Grupo dos Nove constitui o Grupo Militar, chefiado por
Ramalho Eanes, sob comando de Vasco Lourenço, para ter um plano de operações
que anulasse qualquer tentativa de putsh ou insurreição armada.
Outro
momento alto, a 6 de novembro, foram as quatro horas de debate de Soares contra
Cunhal na RTP, em que o “olhe que não” do líder comunista se disseminou como
forma de defesa, sem conseguir justificar “as mais amplas liberdades” perante o
socialista, que defende a democracia pluralista de liberdade total. Na sede do
PPD exulta-se com a prestação do líder do PS. “Soares ganha, na mesma noite, a
legitimação definitiva da liderança da área à direita do PCP e a vitória
inequívoca nas eleições legislativas de cinco meses depois”, escreve Marcelo
Rebelo de Sousa no livro “A Revolução e o Nascimento do PPD”.
Contavam-se
espingardas e lealdades, enquanto circulavam armas para civis numa época em que
centenas de milhares de jovens tinham regressado da Guerra Colonial. Jaime
Neves, chefe dos comandos, dispunha, além da sua tropa, dos chamados
“convocados”, ex-comandos desmobilizados que tinham feito a guerra em África,
chamados de todo o país para combater os comunistas. O PCP e a extrema-esquerda
dispunham de milhares de G-3, roubadas do paiol de Beirolas. Quando foi
questionado sobre o desaparecimento do armamento, Otelo respondeu: “Estão em
boas mãos!”
No
arco contrarrevolucionário, o PS foi o único partido a armar-se. Manuel Alegre,
chefe da segurança do PS, admitirá que o partido começou “a constituir
milícias”, num trabalho de colaboração com Ramalho Eanes. “Eram umas quinhentas
pessoas na cintura de Lisboa. As armas receberam-nas depois”, revelou ao
“Público” numa entrevista em 2000. Estes civis terão recebido enquadramento
militar “em Santarém, na Amadora e junto a outras unidades”. Edmundo Pedro,
resistente antifascista histórico, responsável pela ala paramilitar do PS,
recolhe 150 espingardas G-3 de um oficial próximo de Ramalho Eanes (e será mais
tarde preso por isso). “Na manhã de 25 de Novembro, militantes do PS,
coordenados por Edmundo Pedro, estavam armados nos seus postos”, assumiu Manuel
Alegre no seu último livro, “Memórias Minhas”, lançado este ano.
Quando
regressou da sua longa ausência por doença durante o PREC, Sá Carneiro culpou
Soares de ter sido condescendente com o PCP
Nunca
se saberá o que seria uma guerra civil nestas circunstâncias, mas toda a gente
estava à espera de uma faísca que desencadeasse a ignição. Uma semana antes do
25 de Novembro, o primeiro-ministro britânico James Callaghan enviou um oficial
do Intelligence Service para falar com Mário Soares. Em caso de divisão
Norte-Sul, o Reino Unido faria chegar armas ao Porto, combustível e aviões.
Ao
contrário dos socialistas, que estão dispostos a tudo, Sá Carneiro e Freitas do
Amaral recusam a luta armada. Durante o consulado de Emídio Guerreiro — que
disse estar disposto a “armar 50 mil homens para defender a liberdade” —, o PPD
tinha criado uma célula liderada pelo advogado Júlio Castro Caldas (ministro
da Defesa do PS em 1999-2000), que mantém contactos com milícias por todo o
país. Mas, quando regressa à liderança, Sá Carneiro manda cancelar os planos e
diz que “um partido político não pode envolver-se de modo algum na constituição
de milícias ou grupos armados”, ou “deixa de ser partido e de ser democrático”,
lê-se na sua biografia. Ainda assim, Marcelo Rebelo de Sousa admitirá que
passaram armas pela garagem da sua casa, em Cascais: eram do seu vizinho e
amigo, o socialista e médico Germano de Sousa.
No
Largo do Caldas, Diogo Freitas do Amaral é abordado pelo deputado do CDS Walter
Cudell, que também lhe fala em armar os militantes. “Não aceito receber uma
única arma, seja de quem for”, responde-lhe. “No nosso conceito de democracia
não cabe a luta armada; se um dia lá chegarmos, os militares é que têm de a
assumir, não nós”, conta nas suas memórias. Além disso, teme que o CDS seja
ilegalizado no caso de ser apanhado, mas reconhece que o sector mais à direita
do partido o critica pela “fraqueza” e pela “moleza”.
Outro
risco estava ainda mais à direita. Alpoim Calvão, que na guerra comandou a
operação secreta Mar Verde contra a Guiné Conacri, era o chefe militar do MDLP,
que operava a partir de Espanha às ordens do general Spínola. O movimento
estava a armar-se para constituir um “exército de reserva” para entrar no país
em caso de necessidade, segundo fontes do núcleo político do MDLP, ou para
avançar com um golpe para travar o PREC, segundo o próprio Alpoim. Poucos dias
depois do 25 de Novembro, o movimento receberá 26 toneladas de armas,
provenientes de Angola: 1230 espingardas, a maioria Mauser, e 340 mil munições,
transportadas para Tuy, na fronteira galega. O resto é entregue a núcleos do
MDLP junto à fronteira, na Andaluzia e na Extremadura, revelou Alpoim ao
“Público” há 25 anos. Na mesma série de entrevistas ao jornal, o cónego Melo
dirá que a extrema-direita chegou a ter um golpe previsto para 30 de novembro.
Nunca aconteceu.
Soares
convoca Sá Carneiro e Freitas do Amaral para o Porto
O
clímax revolucionário, a prever o golpe comunista, foi o cerco à Assembleia
Constituinte, a 12 de novembro, por 100 mil operários da construção civil
afetos ao PCP e à extrema-esquerda, que mantiveram os deputados reféns por 36
horas, deixando igualmente sequestrado o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo.
No dia seguinte, Mário Soares — que escapou in extremis de ficar retido — recebe a informação de que um golpe está iminente e a guerra civil por um fio: o PCP estaria a preparar-se para criar a “Comuna de Lisboa”. Com sentido de urgência, mais uma vez é ele que arrasta os outros líderes. Mete-se num carro e vai à sede do PPD: “O Dr. Sá Carneiro? Onde está o Dr. Sá Carneiro?” Mas o líder do PPD não estava. “Digam-lhe que saia imediatamente de Lisboa, porque vai haver um golpe da esquerda revolucionária para tomar conta do poder. Não há condições de segurança, portanto ele deve sair da cidade. Eu próprio também vou sair”, conta Miguel Pinheiro na biografia do fundador do PPD.
A
seguir, telefona a Diogo Freitas do Amaral, líder do CDS: “Olhe: venho
falar-lhe de um assunto grave, bastante grave mesmo. Nós temos informações, que
reputamos fidedignas, segundo as quais o PCP e a extrema-esquerda vão tentar
dar o golpe que se espera muito em breve, num dos próximos dias. Pensa-se que
eles tentarão fazer a Comuna de Lisboa e encurralar cá dentro toda a gente.”
Era quinta-feira. Freitas pergunta-lhe então se deve sair antes do fim de
semana. O líder do CDS não percebe a pressa. “Antes do fim de semana não,
senhor professor. Tem de partir antes do jantar. Hoje mesmo!” Apesar das
“divergências”, Soares tornou-se por este gesto “num amigo especial”,
reconheceria Freitas no primeiro volume da sua autobiografia.
Os
três chefes viajam para o Porto. A maioria dos deputados também se desloca para
o Norte, e até o Banco de Portugal translada o ouro, as notas e as reservas.
Durante vários dias, a Constituinte não tem quórum para funcionar, mas o
Parlamento nunca se chega a reunir no Palácio da Bolsa do Porto, como estava
previsto em caso de crise. O golpe que previam para 16 de novembro não
aconteceu. Foi preciso esperar nove dias.
A
guerra das narrativas
Os
fatores que desaguam no 25 de Novembro são muitos, mas é uma conjugação
anárquica de acontecimentos e provocações a levar ao desfecho que, passados
quase 50 anos, cada lado da barricada interpreta à sua maneira.
São
criados os SUV — Soldados Unidos Venceremos! — para dar consciência de classe
aos militares, que organizam manifestações e dão conferências de imprensa
encapuzados. Numa assembleia decisiva do MFA em Tancos, Vasco Gonçalves é
impedido de acumular a chefia do Governo com o cargo de chefe do Estado-Maior
General das Forças Armadas e sai do Governo para dar lugar ao almirante
Pinheiro de Azevedo, alinhado com as forças moderadas. Há o cerco à
Constituinte e a greve do Governo, combinada pelos Nove com Soares num almoço
no Chocalho. No RALIS, o chefe do Exército, Carlos Fabião, assiste a um
juramento de bandeira revolucionário. Os transmissores da Renascença, ocupada
pelo PCP, são destruídos. E a gota de água: o chefe do Estado-Maior da Força
Aérea, o general Morais e Silva, decapita os paraquedistas de 123 oficiais e
prepara-se para dissolver aquela força especial, que fica nas mãos de sargentos
afetos aos comunistas.
Do
lado socialista, Manuel Alegre continua a contrariar a narrativa dos partidos
de direita: “É tempo de dizer que o 25 de Novembro não é uma vitória da direita
sobre a esquerda. É uma vitória da esquerda abrilista e democrática, militar e
civil, sobre a deriva radical e sectária do gonçalvismo. O 25 de Novembro repôs
o espírito e o programa do 25 de Abril, impedindo soluções revanchistas de
direita”, escreve em “Memórias Minhas”.
Embora o deputado socialista Sérgio Sousa Pinto entenda que o PS perdeu para a direita “o controlo” da narrativa sobre o 25 de Novembro, por causa “da relação equívoca que tinha com o PCP e o Bloco durante a ‘geringonça’”, não é essa a posição oficial do partido. O próprio Mário Soares, como Presidente da República, acabou com uma cerimónia militar anual que se realizava no RALIS, para concentrar todas as celebrações da democracia no 25 de Abril. Pedro Delgado Alves, que faz parte do grupo de trabalho parlamentar para as comemorações, atira a responsabilidade para o outro lado da trincheira: “A direita não quer comemorar o evento, mas sim uma narrativa sua sobre o evento.” Para o deputado socialista, querem “transformar a cerimónia numa coisa equivalente ao 25 de Abril, quando não é”. E justifica: “Abraçamos o papel incontornável que o PS teve nessa data e vamos estar na cerimónia para repor a verdade.”
Seguindo
uma linha antiga do seu partido, Paulo Núncio, líder parlamentar do CDS, diz ao
Expresso que “comemorar o 25 de Novembro é uma questão de memória histórica e
de sentido de gratidão” pelos “princípios universais da liberdade, democracia e
pluralismo político”, que “estiveram sob ataque durante o PREC”, porque “Abril
não está completo sem Novembro”. Mesmo realçando “a coragem e a determinação”
de Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral, Núncio reconhece que “o PS
possuía uma liberdade de atuação que o PSD e o CDS não tinham”.
Para
Vasco Lourenço, a grande vencedora de todo este processo “é a Constituição”,
que será aprovada no ano seguinte e que institucionaliza o regime democrático,
“contra a qual o CDS votou”, recorda. “A única força que vota contra a
Constituição está a apelar à celebração do 25 de Novembro”, ironiza.
O
PCP respondeu ao Expresso que a posição do partido é conhecida. Na verdade,
apesar de a direita querer festejar solenemente a sua derrota, Álvaro Cunhal
considera que os comunistas também fazem parte dos vencedores: “A verdade é
que, no 25 de Novembro, Soares, de companhia com a extrema-direita, sofreu
séria derrota política. Nem a liquidação militar da ‘Comuna de Lisboa’, nem
guerra civil, nem ilegalização e repressão do PCP” — cuja continuação foi
blindada com uma declaração de Melo Antunes à RTP no dia 26. No seu livro de
1999, o ex-líder comunista reclama três vitórias: a salvaguarda das liberdades
e da democracia; a formação de um novo Governo, em que continuou o PCP (contra
a posição do PPD); e a aprovação da Constituição de 1976. E nunca abandona a
tese de que o 25 de Novembro foi um golpe dos Nove e não um contragolpe para
responder ao avanço da esquerda revolucionária.
Curiosamente,
Diogo Pacheco de Amorim, deputado do Chega e vice-presidente da Assembleia da
República, que fez parte do MDLP, concorda com Cunhal: “A vitória do PCP foi
total na minha opinião, porque atingiu os objetivos que tinha.” Com a
“impossibilidade absoluta de tomar o poder em Portugal, o PCP tinha instruções
claras da União Soviética, que o que queria era Angola”, que teve a sua
independência a 11 de novembro. Para o homem tido como ideólogo do Chega, o 25
de Novembro institucionalizou o Bloco Central e permitiu outra vitória do PCP,
com os partidos mais à direita já ilegalizados: a aprovação da Constituição de
1976, só revista em 1982, a institucionalizar um regime tendencialmente de
esquerda. Admitindo que “a direita radical, de facto, foi uma das derrotadas no
25 Novembro”, Pacheco de Amorim também diz que “o PCP manteve um poder
desproporcional” e que não defendia a sua ilegalização, embora essa posição não
fosse unânime no MDLP. No entanto, acha que “faz sentido comemorar” a data:
“Imagine que o poder tinha caído para a extrema-esquerda a 25 de Novembro...”
Ao
contrário da Associação 25 de Abril, o ex-Presidente Ramalho Eanes, que aceitou
o convite para estar presente nas comemorações, também disse, no livro “Palavra
Que Conta”, lançado há uma semana — uma longa entrevista à jornalista Fátima
Campos Ferreira —, que “o esquecimento do 25 de Novembro não ajuda a
democracia, porque a História não se apaga”. O operacional do contragolpe diz
não perceber “que estigmatizem o 25 de Novembro, porque é a continuação do 25
de Abril”.
A
direita vai festejar o esforço da esquerda para derrotar a esquerda mais à
esquerda, mas a verdade é que revolução de Álvaro Cunhal deu um passo atrás
naquele dia. E nunca mais deu dois em frente.
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