Nestes quadros sociais deparamos com dois factos
bem pouco vulgares. Um deles respeita à presença de um inquisidor de Coimbra em
Bragança, durante uns 4 meses, concedendo audiências e instruindo processos.
Sobre o assunto estamos preparando um trabalho que em breve apresentaremos. O
outro facto é a estadia em Bragança, entre junho e novembro de 1685, do “juiz
executor geral das dívidas e fazendas do fisco real” do distrito inquisitorial
de Coimbra, Dr. Luís Álvares da Costa. O seu trabalho desenvolveu-se
“executando, cobrando, arrecadando e vendendo tudo o que ao dito fisco
pertence”.
Terão sido as notícias de fuga de bens
sequestrados que levaram a esta deslocação do juiz do fisco de Coimbra para
Bragança? Teria isso a ver com o grande número de prisões então efetuadas na
área da comarca de Bragança/Miranda? E estará também relacionada com
dificuldades financeiras da inquisição e do fisco, derivadas da suspensão da
sua atividade, em anos anteriores, que exigiam medidas urgentes de recolha de
fundos?
Seja como for, ainda antes de chegar a Bragança,
o juiz Álvares da Costa expediu ordens aos 4 concelhos do ramo de Miranda, para
os juízes de fora ordenarem a entrega, em Bragança, dos dinheiros e peças de
ouro do fisco, que estavam em mãos de depositários. Assim, em Miranda, em mão
do depositário Bento Simões, encontravam-se 89 960 réis. Por ordem do juiz de
fora, aquele dinheiro foi levado a Bragança, pelo meirinho da cidade, André
Moreira Freire, em 24.6.1685. Obviamente que todas estas diligências foram
objeto de registos e certidões notariais.
O dinheiro resultou da venda de bens sequestrados
em Campo de Víboras a Maria Fernandes (4 739 réis); em Vimioso (a Manuel da
Costa e sua mulher (5 600) e à mulher de João Carvalho (20 000); em Sendim a
António Rodrigues (13 392). O meirinho não trazia registo nem conseguiu
explicar a origem de 5 moedas de ouro no valor de 22 000 réis que entregou,
porque o depositário dessas moedas era José de Sá Dantas, do Vimioso, que então
estava preso em Coimbra e quem lhas entregou foi o cunhado dele, cónego António
Pires Paiva. Para além do dinheiro, trazia um anel de ouro que fora sequestrado
à citada Maria Fernandes e o entregou também. Recebidos os 89 860 réis e
passada a respetiva certidão, mandou o juiz Álvares da Costa retirar 2 000 réis
para pagar a viagem do meirinho de Miranda a Bragança e 219 réis para levar ao
escrivão de Miranda que tinha feito os documentos de suporte do dinheiro
entregue. Descontos feitos, o anel e os 87 641 sobrantes foram entregues pelo
juiz ao depositário geral de Bragança, Miguel Rodrigues, que os haveria de levar
a Coimbra.
Em 17 de setembro seguinte, na mesma casa e
perante o mesmo juiz, compareceu Francisco Rodrigues, depositário do fisco na
vila de Algoso a entregar 36 257 réis, procedidos dos sequestros e inventários
de bens de João Rodrigues, sapateiro, natural de Sendim, morador no Algoso;
Filipe Lopes, de Urrós; Filipe Cardoso, de S. Pedro da Silva; e António
Rodrigues, da vila de Algoso. Registe-se que todos estes réus tinham sido
presos antes de 1670. Filipe Cardoso, por exemplo, foi preso em 1665 e sentenciado
em 1667. Portanto, a execução do sequestro arrastava-se desde há 18 anos.
Diligência semelhante se realizou em 22.10.1685, dia em que Pedro Afonso, da
cidade de Miranda do Douro foi a Bragança fazer entrega de 65 862 réis
provenientes do foro de 20 alqueires de trigo sequestrados a António Rodrigues,
de Sendim e alguma fazenda que era do tendeiro João da Costa, de quem se falou
em um dos textos anteriores.
Daquele dinheiro, porém, o juiz Costa mandou
subtrair 8 294, antes de o entregar ao depositário geral de Bragança. Vejamos:
Para si próprio – 4 872 réis, de custas sobre a execução de uma parte daquele
dinheiro... Ao caminheiro Simão de Brito, que foi a Miranda fazer a dita
execução – 245 rs. Para o mesmo juiz, “de custas de caminhos, estadia e feitio
de uma carta” – 2 177. A Pedro Afonso, da deslocação a Bragança – 10 tostões =
1 000 rs. Guardamos para o fim a entrega feita por João da Silva,
meirinho do judicial do concelho de Outeiro, no montante de 12 000 réis. Este
dinheiro tem uma história exemplar. Vamos contar: António Oliveira era um
cristão-novo natural e morador em Argozelo. Tinha 37 anos quando foi
sentenciado no auto da fé de 13.2.1667. Sequestraram-lhe o rendimento de uma
vinha e de um prado que tinha, rendimento calculado em 2 000 réis.
Os outros 10 mil réis resultaram de multas
impostas pelo fisco a 3 dos seus agentes em Outeiro, a saber: o juiz da paz,
Francisco Rodrigues Santulhão, o escrivão Leonardo Machado e o citado João da
Silva, meirinho do judicial. O juiz e o escrivão foram condenados em 4 000 réis
cada um e o meirinho em 2 mil, por “levarem mais do que importava do
inventário” de Estêvão Rodrigues. Ou seja: ao fazer o inventário e sequestro
dos bens, levaram mais dinheiro do que pertencia, pelo trabalho. Sim,
embora existissem tabelas aprovadas pela inquisição e fisco real, muitas vezes
os agentes do fisco, quando intervinham na feitura dos inventários e sequestros
dos presos, na arrematação dos seus bens e outras diligências, cobravam mais do
que deviam. Neste caso, foram condenados.
De outros casos temos conhecimento e logo no
primeiro texto que escrevemos sobre este assunto apresentámos uma carta do
escrivão do fisco em Bragança denunciando abusos dos agentes na execução das
prisões e na feitura dos inventários. Realizou-se um processo de averiguações
em cujo despacho, datado de 16.8.1715, se condena o comportamento de
familiares, escrivão e outros agentes da inquisição e do fisco. Vejam: - Nos
inventários feitos nesta cidade, não somente se acham contados salários por dias,
como se fossem fazer fora da terra, mas ainda o salário de cada dia muito
exorbitante ao que cada um tem taxado pela lei, quando vai fora da terra. O que
é mais de notar, havendo tantas ordenações que proíbem, com graves penas,
exceder cada um o salário que pelas leis lhes é taxado. - A falta, parece, é do
escrivão, omitindo o que é manifesto e que no dito provimento se lhe encarrega,
mas como também quer que lhe contem salários de dias em sua casa, não lhe
convém ir contra a própria conveniência a dita observação do provimento. E
chega a tanto excesso esta conta de salários de dias na própria terra, que
houve vários inventários com escrita somente de uma folha de papel de que, em
sua execução, ficou para o fisco menos de 600 réis, e a conta dos 3 inventários,
pelos custos deles, importou em mais de 2 mil réis cada um; e nestes excessos
tem havido tanto dano da fazenda real, que para ressarcir de tantos
inventários, deve promotor o fiscal e o escrivão observar os provimentos, com a
pena de se lhe dar em culpa e se lhe imporem as que, pelas leis se dá aos que
levam mais do que por elas lhes é taxado. - Fique em advertência que o escrivão
deve escrever no inventário as roupas que levam os presos para o santo ofício
(…) e assim também fará assinar os familiares o termo do dinheiro que se lhe
entrega para alimentos de cada preso (…) e houve nisto tal desordem que levavam
dinheiro de vários presos sem saberem dizer de que presos era (...) - Nas
contas dos inventários deve declarar abaixo de que procedeu o dinheiro, se de
bens vendidos para isso ou dado pelos depositários por essa conta, e em tudo
toda a declaração necessária, pelas muitas dúvidas que depois resultam,
passados muitos anos, em que as memórias não podem estar certas, ainda que a
vida dure (…)
Na verdade, parece que muita gente corria atrás
do dinheiro dos judaizantes presos pela inquisição e muitas bocas em Bragança
se alimentavam dos bens sequestrados aos judeus. E isto mesmo sem transgredir
as leis. Veja-se como “voaram” legalmente e com despacho do próprio juiz
Álvares da Costa, 41 952 réis na execução de uns inventários, em Bragança, em
25.11.1685: Ao Dr. Juiz de fora, de uma devassa que tirou… – 1 436 rs. Ao
escrivão Diogo Monteiro, de uns inventários – 1 345. Ao escrivão que este fez –
5 773. De tirar a devassa acima – 842. Ao porteiro Domingos Álvares, dos
pregões, arrematações e caminhos a Quintela – 2 040. E 200 réis que se deram a
um louvado pela liquidação da casa de João da Costa. E outros 200 réis que se
deram à mulher do Chupa, por um concerto da casa em que morava, que era do
fisco e se vendeu também. De custas que devia Manuel Martins, de Quintela – 2
300. E assim mais a ele juiz executor 32 998 réis, procedidos de: 2 300 de
custas que devia Manuel Martins, de Quintela, ao tempo que se lhe arrematou a
fazenda para o fisco (…) E nas custas de António da Costa – 843. (…) O
despacho acima transcrito não foi o único, nem o primeiro. Abusos como os
descritos já vinham de outros tempos.
Veja-se, a título de exemplo, um excerto de uma
provisão expedida de Chacim para Bragança, em 22.7.1703: - Nos sequestros, nem
em outra alguma diligência que se fizer dentro da cidade, se levará salário de
dias, assim os ministros como os oficiais; só podem levar quando fora da terra;
e se lhe deve então contar na forma da lei somente; e deste provimento se fará
parte ao ministro que fizer o sequestro ou diligência, para o fazer executar.
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