Uma análise aos últimos oito meses de vida do Grupo Espírito Santo revela que o banco era na prática o
gestor de tesouraria da Portugal Telecom. O colapso do GES não poderia, por
isso, deixar ilesa a PT. E um banqueiro caiu em desgraça. Esta é a segunda parte
da história do fim de um império.
As grandes crises desenvolvem-se, muitas
vezes, em plena luz do dia, mas há sempre quem não dê por elas. Foi o que
aconteceu com o Grupo Espírito Santo (GES), que, depois de três anos de
progressiva degradação, permanentemente disfarçada, e comportamentos duvidosos,
faliu num mês. Para se ser mais preciso: o universo empresarial Espírito Santo
tinha excesso de dívida acumulada, que a crise económica profunda e longa acentuou,
e não resistiu; Ricardo Salgado, presidente do grupo, baseava o seu poder num
fôlego financeiro que afinal não existia e o mito caiu. Há ainda a Portugal
Telecom com uma relação promíscua com o BES, que actuava como gestor de
tesouraria da operadora, o que os episódios aqui relatados provam.
A história do poder que o GES assumiu
durante décadas conta-se até Dezembro de 2013. Os oito meses seguintes, que
culminaram na detenção para interrogatório de Ricardo Salgado, líder do clã
durante duas décadas, são o epílogo de um grupo com 149 anos. E foi tão fácil
pôr-lhe uma pedra em cima.
Como a Revista 2 adiantou na semana
passada, o que se passou na esfera Espírito Santo foi um processo com múltiplas
ocorrências públicas, polémicas judiciais cruzadas, que tornam impossível às
autoridades, Governo, Banco de Portugal, Comissão de Mercado de Valores
Mobiliários (CMVM) dizer que não sabiam de nada. A hesitação em atacar o
problema de frente explica-se, talvez, pelo medo de contaminar o sistema
financeiro português, gerando uma crise de confiança e de liquidez que acabasse
em falências. Ou, então, pelo receio de intervir num banco liderado por um
homem poderoso.
Final de 2013. “Somos os herdeiros de uma família que do
nada, a seguir à revolução, reconstruiu um grupo com mais de 145 anos sem nunca
pedir ajuda ao Estado.” Durante anos, este foi o discurso-marca do Grupo
Espírito Santo e servia de alavanca a uma outra declaração de Ricardo Salgado:
“O BES não necessita de recorrer à linha de recapitalização da troika.” No
último Natal, a ideia de uma falsa prosperidade é recuperada por Isabel Vaz, da
Espírito Santo Saúde — ES Saúde, já este mês vendida à chinesa Fosun, na sua
mensagem aos colaboradores, elogiando a solidez do accionista Rioforte (a holding não financeira do GES — com a
ES Saúde, Comporta, ES Viagens, Hotéis Tivoli, imóveis). A verdadeira situação
é outra: o grupo mal conseguia gerar rendimentos para pagar os juros da dívida.
E, em cima, ainda punha mais dívida.
A estrutura piramidal do grupo, com um
esquema intrincado de holdings e sub-holdings, servia de biombo
aos problemas que existiam no universo Espírito Santo há vários anos — à cabeça
estava a ES Control, que juntava os cinco ramos da “família” (Salgado,
Ricciardi, Moniz Galvão, Raimul e Mosqueira do Amaral). Por sua vez, a holding-mãe tinha 51% da ESI, que
dominava a Rioforte (área não financeira) e possuía 49% da ESFG (BES e
Tranquilidade).
Janeiro
Início de 2014. O Banco de Portugal (BdP) entra em 2014
tendo na linha da frente das suas preocupações o universo empresarial da
família Espírito Santo. Carlos Costa dispõe, agora, de muita informação. As
inspecções às holdings financeiras vieram expor as suas
entranhas: a 30 de Setembro de 2013, os passivos da ESI já iam em 5700 milhões
de euros. E no BES Angola tinham sido levantados em cash 500 milhões de euros,
havendo 3 mil milhões de euros de créditos sem beneficiário. A tendência é,
portanto, para o “buraco” se aprofundar.
5700
14 de Janeiro. A correspondência entre o BdP e Ricardo
Salgado, presidente da ESFG (entidade supervisionada pelo BdP), intensifica-se
nas primeiras semanas de 2014, com muitas orientações e pedidos de
esclarecimento. As respostas do grupo são evasivas. Numa das cartas, o
vice-governador Pedro Duarte Neves solicita que o banqueiro lhe envie um plano
detalhado de saneamento e correcção dos desequilíbrios para “assegurar uma
gestão sã e prudente” que preserve o banco “do impacto da exposição à ESI”, que
em Janeiro de 2014 já estava falida. Há, neste momento, 3 mil milhões de euros
de títulos de dívida (que funcionam como financiamento) da holding nas carteiras dos clientes do
BES. No grupo, está a Portugal Telecom (PT), prestes a tornar-se um escravo.
Segunda quinzena de Janeiro. A PT aspira a ser um protagonista da
criação de um grande grupo luso-brasileiro. O que remete para relações não
recomendáveis entre gestores de empresas relacionadas que não se devem tornar
promíscuas.
Depois de, em Outubro de 2013, Ricardo
Salgado ter sido informado de que a PT não ia renovar a aplicação de 750
milhões de euros na ESI, pediu ao administrador financeiro (CFO) da operadora
para ir ter com ele ao 15.º andar do n.º 195 da Avenida da Liberdade, em Lisboa,
a sede do BES. O banqueiro recebe Luís Pacheco de Melo na antecâmara da sala da
comissão executiva do BES (um espaço comum onde os gestores se sentam às
secretárias).
Ricardo Salgado conhece bem o CFO da PT,
ex-BESI (banco de investimento do BES), e apresenta-lhe um “esquisso” da
reestruturação em curso no GES que visa tornar a Rioforte uma empresa
apetecível para o mercado de dívida. Dirige-se a ele no tom habitual, suave.
Contrariando a anterior decisão da operadora, de desmobilizar o investimento na
ESI (uma aplicação de curto prazo), Salgado procura agora persuadir Pacheco de
Melo a prolongar o empréstimo de 750 milhões à holding e sugere mesmo que prepare a
migração para a Rioforte. O presidente do BES faz outro "pedido": que
a PT reforce o apoio à Rioforte até mil milhões. Mas o CFO explica que não tem
essa disponibilidade e nota que fará “uma única aplicação, com maturidade a 15
de Março de 2014”, altura em que terá de ter a verba livre para concretizar “o
previsto aumento de capital da Oi”.
Este episódio, assim como os que a seguir
vão ser relatados (alguns com base em relatórios a que a Revista 2 teve
acesso), faz crer que Salgado não se fica por dar orientações estratégicas à PT (accionista do banco, com 2%). Na
qualidade de representante do BES (com apenas 10% da PT), o banqueiro gere a tesouraria (o dinheiro que a empresa tem
disponível para usar) da operadora de telecomunicações. E surge a dar
instruções sobre como e onde os primeiros responsáveis da PT, os presidentes e
o CFO, devem investir os seus fundos.
No quadro das investigações aprofundadas,
entretanto, abertas pela CMVM às relações BES-PT, Carlos Tavares anda no rasto
de uma reunião (informal ou não) que terá ocorrido ainda em Janeiro, mesmo
antes da última ida de Pacheco de Melo a despacho ao banco, e que pode ter
juntado os quartéis-generais das duas empresas (presidentes e CFO). E onde
Salgado terá requerido à gestão da PT que “protegesse” o GES num momento
particularmente difícil. Saber se o encontro-mistério se realizou ou não
revela-se para a CMVM uma missão complicada, pois ninguém o assume, mas todos
falam nele. Caso se confirme, prova que a gestão da PT estava a par das
dificuldades do GES e deveria ter acautelado os interesses da operadora, não
arriscando verbas em produtos tóxicos ou, então, determinando uma redução da
exposição a dívida emitida pelas holdings. A CMVM desconfia de irregularidades muito
graves, nomeadamente, que os gestores da PT (Bava, Granadeiro e Pacheco de
Melo) possam ter “omitido deliberadamente” informação relevante ao mercado.
MIGUEL MADEIRA
27 de Janeiro. Quando se tem poder a mais, não cumprir as
obrigações pode ser uma grande tentação. “É o homem que esteve à frente das
nossas contas este tempo todo e é claro que sente um peso psicológico brutal em
cima dele. Temos de o proteger”, sugere Ricardo Salgado, referindo-se a
Francisco Machado da Cruz, o contabilista do grupo que ajudou a ocultar 1300
milhões de euros das contas da ESI. Segundo o relato do jornal i,
Salgado observou ainda: “O nosso Francisco recuperou 30 ou 40 milhões de
dólares em indemnizações e aquilo [o Espírito Santo Plaza, em Miami] está a ser
muito bem gerido”, defendeu o presidente do BES, também gestor da ESI. O mesmo
contabilista virá dizer que Salgado sabia desde 2008 que havia manipulação das
contas. Em breve, o banqueiro irá fazer-lhe críticas públicas. Machado da Cruz
partiu já este ano para um retiro silencioso no Brasil, depois de receber uma
choruda “compensação”.
O registo audível dos diálogos no conselho superior, onde estão
representados os cinco ramos do núcleo duro do GES, revela um nível grande de
informalidade. “As conversas eram até ao final de 2013 gravadas pelo José
Castella [o secretário do conselho superior], que depois as transcrevia para o
papel e Salgado filtrava antes de assumirem forma de acta”, evocou há uns meses
José Maria Ricciardi, o presidente do BESI, que, no princípio deste ano, deixou
de frequentar com assiduidade os encontros na Rua de São Bernardo. Mas, quando
vai, Ricciardi passa a escrito as suas declarações. “Envio-as a seguir para o
José Castella, assinadas e fico com a cópia.” O que mostra o grau de
desconfiança que se instalou entre os primos Espírito Santo.
31 de Janeiro. A auditora KPMG
entrega ao BdP o relatório preliminar sobre as contas da ESI, com referência a
30 de Setembro de 2013, e conclui que a situação da empresa estava negativa em
2400 milhões de euros. A auditora salienta que ainda não obteve dados
detalhados sobre as sociedades suíças Eurofin, que o regulador admite terem
funcionado, ao longo de anos, como “sacos azuis” usados para o grupo e o banco
ocultarem dívida e prejuízos. Nenhuma desta informação é passada para o
público.
Fevereiro
6 de Fevereiro. Para responder às recomendações de Carlos
Costa de maior transparência na cascata accionista do grupo, Salgado anuncia
que vai aligeirar a estrutura e clarificar os fluxos de financiamento entre holdings e sub-holdings. O que na prática visava liquidar a ESI (tóxica)
e transferir progressivamente as suas emissões de papel comercial (dívida) para
a Rioforte. A medida acabará por afundar a holding não financeira, que tinha
activos sólidos.
7 de Fevereiro. A ES Saúde confirma a abertura de 49% do
capital em bolsa. O encaixe de 120 milhões é uma gota no oceano de problemas de
Salgado, mas serve para passar a mensagem às autoridades de que o saneamento
empresarial está em curso.
10 de Fevereiro. O BES sempre teve em relação à PT
comportamento de abutre. Na sequência da instrução do accionista, a operadora
de telecomunicações acaba por arranjar mais 140 milhões de euros que lhe
permite reforçar o empréstimo ao GES. A partir desta data, a exposição da PT ao
GES concentra-se na Rioforte e totaliza, não os mil milhões pedidos por
Salgado, mas 897 milhões. Há, fora disso, outro tanto em depósitos aplicados no
banco e filiais estrangeiras.
12 de Fevereiro. Em São Paulo, é
Carnaval. Do outro lado do Atlântico, o presidente do Espírito Santo Investment
Bank Brasil (filial do BES), Ricardo Abecassis Espírito Santo, está prestes a
colocar-se no centro da polémica ao assumir-se como candidato à sucessão do chefe:
“Estou sempre disponível para os desafios que se me apresentem, se os
accionistas assim o quiserem, mas é um processo que se conversa internamente no
grupo e não há pressão, nem data.” Ao ser inquirido sobre se o BES vai aumentar
o capital, Abecassis nem hesita: “Não há necessidade.” Estava, evidentemente,
longe da realidade que vai chegar a galope e colocar à vista de todos os graves
problemas da esfera familiar.
13 de Fevereiro. 17h30. Contra todas as expectativas,
Salgado aparece como “o patinho feio” do sector bancário, a divulgar prejuízos
anuais de 517,6 milhões de euros, o que contrasta com lucros de 96,1 milhões em
2012. As imparidades de crédito (perdas potenciais) cifram-se em 1422,8 milhões
de euros. O
quadro é negro, portanto.
Em
Fevereiro, Salgado aparece a divulgar prejuízos anuais de 517,6 milhões de
euros NUNO FERRERIA SANTOS
Ainda assim, na sala do
conselho do BES, onde se divulgam as contas de 2013, o clima, habitualmente
contido, é de rara descontracção. Quando lhe perguntam se já falou com o
candidato Abecassis, Salgado responde em tom de conversa de café: “Ainda não,
pois temos tido muito que fazer, mas o dr. Ricardo [Abecassis], certamente,
aparecerá por aí um destes dias.” Já sobre a declaração do primo “brasileiro” que
exclui a possibilidade de o BES recorrer de novo aos accionistas, observa: “O
dr. Ricardo Abecassis é um excelente banqueiro mas, no Brasil, estamos em
período de férias, entre o Natal e o Carnaval, e ele anda um bocadinho
distraído.” “O capital [do BES] é robusto, mas não podemos cantar glória e não
posso dizer que não vamos ter um aumento de capital pela frente” em 2014.
Injecção de fundos estatais? “Não é hipótese, será sempre por recurso a
investidores internacionais.” Perante a insistência dos jornalistas, o chefe do
clã sai-se com nova frase que, naquele dia, faz o título da notícia do PÚBLICO:
“Desde aqui lhe envio [a Abecassis] um beijinho”. A esta distância dá para ver
ali um sinal de fim de festa.
Depois de ele próprio
ter recorrido, em 2011 e 2012, a três planos de amnistia fiscal dirigida a quem
detinha património fora de Portugal, Salgado (que pagara de imposto 183 mil
euros em vez de 4,3 milhões de euros) termina a conferência de imprensa a
“elogiar as Finanças e o Governo pela amnistia fiscal que ajuda a reduzir o
défice estatal. O BES incentivou os clientes” incumpridores a regularizarem as
dívidas ao fisco e à Segurança Social.
14 de Fevereiro. O vice-governador do BdP, Duarte Neves,
está de novo a escrever ao presidente do BES, desta vez para frisar a
necessidade de cumprir as suas determinações e proteger a ESFG [a holding da família que concentra a posição
no banco] do impacto da exposição à ESI e de potenciais riscos na sua
credibilidade. Novamente está em causa a comercialização em larga escala, e aos
balcões do BES, de dívida das duas sociedades problemáticas: ESI e Rioforte.
17 de Fevereiro. O GES segue as recomendações europeias e
simplifica o sistema societário. Para acompanhar a execução do plano de
negócios da área não financeira, Salgado cria uma estrutura de gestão interna
com uma maioria de gestores independentes. Um dos pivôs que serão chamados por
Salgado para se envolverem no projecto de reorganização do grupo é José
Honório, ex-CEO da Portucel, e que Vítor Bento também irá buscar para ser seu
vice-presidente em Julho, quando substitui Ricardo Salgado.
26 de Fevereiro. O BdP tornara-se
omnipresente no 15.º andar da sede do BES, onde caem pedidos de informação e
recomendações. Numa carta, com dez páginas, Duarte Neves dirige-se ao banqueiro
em termos fortes: “Não obstante a natureza da gravidade das preocupações
prudenciais que subjazem à determinação [do BdP] das medidas correctivas”, a
ESFG “limita-se” a apresentar “intenções e possibilidades”, sem propostas
“objectivas, detalhadas e calendarizadas”.
Para não haver dúvidas,
o vice-governador deixa um resumo exaustivo do historial de iniciativas formais
que desenvolveu junto de Salgado para que apresentasse um plano credível de
curto prazo para estabilizar o GES. O que este nunca fez. E exige à ESFG que
constitua uma almofada de 700 milhões para cobrir riscos associados à ESI.
Ainda, assim, o vice-governador termina com boa onda: “Os melhores cumprimentos
e a expressão de muita consideração.”
Não só tínhamos
dúvidas sobre a idoneidade [de Ricardo Salgado], como não sabíamos o que andava
a fazer
Alto
responsável do BdP
Perante o incumprimento
das orientações e o tom assertivo da carta enviada a Salgado, há quem, no BdP,
admita que dali resultasse uma acção mais intrusiva para afastar o banqueiro do
BES, pois “não só tínhamos dúvidas sobre a sua idoneidade, como não sabíamos o
que andava a fazer”. Carlos Costa parece, no entanto, fazer cerimónia e evita
entrar com a artilharia pesada na Avenida da Liberdade. Mas toma, em todo o
caso, uma decisão: ao fim de dez meses de José Maria Riciardi, Ricardo Salgado
e Morais Pires terem terminado o seu mandato de administradores do BESI e de
terem solicitado ao BdP que revalidasse os registos de idoneidade (necessários
para exercerem funções), o governador manda suspender o processo e dispara com
pedidos de explicações.
A partir dali, torna-se
evidente que Carlos Costa já não confia em Salgado. E a relação até aí
presencial restringe-se a contactos telefónicos. A ligação da comissão
executiva do BES ao BdP passa a ser feita, em especial, pelo administrador
executivo Joaquim Goes, com o pelouro do risco. E assim aconteceu até às
vésperas de o BES divulgar as últimas contas (a 30 de Julho), com prejuízos
históricos de 3400 milhões.
Março
25 de Março. As preocupações do regulador sobre a
solidez do capital do BES justificam nova carta, agora para o discreto
presidente não executivo, Alberto Alves de Oliveira Pinto. Carlos Costa pede
“medidas adicionais de capitalização” do banco, de pelo menos 750 milhões, para
assegurar a passagem nos testes europeus de stress.
98%
da
tesouraria da PT (1643 milhões) estava aplicada em depósitos do banco e em
empréstimos à Rioforte (897 milhões)
A troca de
correspondência entre supervisor e BES foi sempre sigilosa. Mas é a partir
desta fase que Carlos Costa surge publicamente com a retórica: o GES é o GES,
onde estão os riscos; o BES é o BES, o activo confiável. Num jantar com a
comunicação social, convocado em cima da hora, Salgado alinha na tese e remete
para a Rioforte, presidida por Manuel Fernando Espírito Santo, a origem dos
desequilíbrios. Só que a ESI e a Rioforte já tinham contaminado a base de
clientes da área financeira. Em paralelo, anuncia que a ESFG vai criar uma
“almofada” de 700 milhões para fazer face a riscos de incumprimento das duas
sociedades problemáticas. E a provisão é constituída com a Tranquilidade
(liderada por Brito e Cunha) dada como garantia, o que foi aceite pelo BdP. Mas
o regulador vai acabar a constatar que fez mal, pois a Tranquilidade não valia
os 700 milhões, apenas 200 milhões. Já depois do escândalo, o presidente do
Instituto de Seguros de Portugal veio dizer: “Se me tivessem perguntado, teria
dito que [a Tranquilidade] não valia 700 milhões.”
Naquele preciso
momento, já há depositantes do suíço Banque Privée (do BES), maioritariamente
da classe média alta, muito desconfiados. Pedem os resgates das suas aplicações
em dívida da ESI e da Rioforte, com o intuito de deslocarem os reembolsos para
contas em Portugal, e as ordens não se cumprem. “A seguir à crise de 2008,
assustei-me e transferi o dinheiro para a Suíça, no pressuposto de que estaria
protegido”, conta um dos lesados. O fundo de garantia de depósitos helvético (o
máximo que um depositante pode recuperar em caso de falência do banco) é de 80
mil euros, abaixo dos 100 mil nacionais, onde vigora ainda um sistema de
indemnização aos investidores (que percam as aplicações), mas que não existe na
Suíça.
Última semana de Março. Os anos de prosperidade vão longe. E
Salgado intensifica as relações promíscuas com a PT. Com a aproximação da
assembleia geral da PT para aprovar a fusão com a Oi, o banqueiro fica ansioso,
pois tem receio de perder o controlo da gestão da tesouraria da operadora. Ora,
as suas prioridades estão centradas exclusivamente nos interesses do grupo
familiar. E, assim, deixa novo aviso aos responsáveis da operadora de
telecomunicações: o BES não valida a concentração se o estado-maior da PT
Portugal e da PT SGPS, lideradas, respectivamente, por Bava e Granadeiro, não
mantiver o financiamento à Rioforte por mais um ano e o aumentar para mil
milhões.
O ambiente é, agora, de
cortar à faca, pois há uma decisão da PT de resgate dos 897 milhões aplicados
na Rioforte para os ter disponíveis em Abril. O presidente executivo (CEO) Henrique
Granadeiro chama, então, o responsável pela área financeira e manda-o ir ao BES
falar com Morais Pires [então CFO do banco], “resolver o tema” e “contratar”
nova operação. O CEO da PT não quer voltar a ouvir falar no assunto. No caminho
para a Avenida da Liberdade, Pacheco de Melo pode até ter questionado: “Porquê
fazer o que diz Salgado?”
26 de Março. Num frente a frente com Morais Pires, o CFO
da PT coloca reservas a renovar o investimento na Rioforte para além do período
previsto (o investimento deixa de ser de curto prazo). Os dois protagonizam uma
troca azeda de palavras. Nas altas esferas do BES, o encontro dá ruído. Como
Morais Pires se deixara capturar pelos interesses do accionista GES, por
acreditar que será o eleito da família para substituir Salgado como timoneiro
do clã, reduz a nada as objecções de Pacheco de Melo.
Quando chega ao seu
gabinete, Pacheco de Melo revalida o investimento na Rioforte e estende o prazo
por mais três meses. O CFO podia ter dito que não, mas aceitou cumprir as instruções
de Granadeiro, que segue as de Salgado. Já Zeinal Bava procura distanciar-se do
imbróglio, dizendo nada saber do que se passava com a tesouraria da PT, pois
estava na Oi (posição que defendeu então ao PÚBLICO). Mas, se não sabia, devia
saber, pois sendo em simultâneo CEO da Oi e da PT Portugal tinha controlo sobre
os executivos e, em especial, sobre o departamento financeiro. E a aplicação
inicial na ESI foi ordenada por ele. No dia seguinte, os accionistas da PT
aprovam a fusão com a Oi.
Abril
Zeinal
Bava e Henrique Granadeiro, presidentes da PT MIGUEL MANSO
Início de Abril. José Honório começa a aparecer nas reuniões
do conselho superior do GES para discutir a dívida das holdings (com um passivo de 6 mil
milhões) e assegurar o reembolso dos títulos emitidos pela ESI e pela Rioforte.
Honório defende, então, que como o GES é sistémico (a sua falência tem impacto
na economia) deve ser procurada uma solução que tenha o apoio do Estado através
de linhas de crédito de longo prazo.
14 de Abril. Numa reunião do comité de acompanhamento da
fusão PT-Oi (que inclui, entre outros, Bava, Morais Pires e representantes e
accionistas da Oi), o BES bate de novo o pé para garantir que a PT se manterá
como o seu porta-moedas. São os interesses que protegem brasileiros e
portugueses. O Expresso revelou, neste Verão, um email trocado entre Salgado e
accionistas da OI que alude a uma combinação de cavalheiros. O episódio é este:
no contexto das negociações para a fusão, um ano antes, Salgado colocara
objecções: a operação era politicamente delicada; gerava grande desequilíbrio
em desfavor da PT. Argumentos que escondiam a motivação: salvaguardar o
controlo da liquidez da operadora. Então, o comité de acompanhamento
estabeleceu um acordo tácito, não escrito, no sentido de usar a nova entidade
para encobrir dívida (1500 milhões) de Andrade Gutierrez e da La Fonte, que
tinham as suas posições na OI financiadas pelo BNDES, o banco estatal
brasileiro facilitador de negócios [que surge envolvido no caso Mensalão].
A PT, já se sabe, tornara-se ao longo de dez anos um mero instrumento para
Salgado. Mas as movimentações à volta daquela que chegou a ser a maior empresa
portuguesa com um valor de mercado de 11 mil milhões (esta semana estava abaixo
de mil milhões) estavam a acentuar-se de forma descontrolada.
“Salgado andava assustado com a rapidez dos acontecimentos, preocupado e
com a cabeça dispersa pelas investigações do Ministério Público”, evoca um
ex-colaborador. O banqueiro está com medo do colapso. Mas para fora continua
com o discurso optimista e aura de poderoso, o que pode levar o Banco de
Portugal a fazer cerimónia e a não meter prego a fundo para o afastar da
gestão. Carlos Costa tem, talvez, receio de carregar no botão da bomba atómica
(intervir no BES) e desestabilizar o sistema no seu todo. E o Governo, a
semanas da saída da troika, também não queria injecção de fundos, como se verá
mais à frente.
Entre um supervisor titubeante e manter seguro o GES, a solução parece
óbvia: salvar o forte. E é assim que, nos meses seguintes, Salgado e Morais
Pires, por seu livre arbítrio, vão tentar resolver o imbróglio da área não
financeira familiar, desafiando as instruções do BdP para um “corte” entre o
BES e o GES. Salgado e José Manuel Espírito Santo assinam cartas de conforto de
270 milhões para garantir que os empréstimos de empresas venezuelanas à ESI e à
Rioforte em caso de incumprimento são pagos pelo banco. Em paralelo, recorrem a
um sistema de triangulação de fundos para financiar às escondidas das
autoridades as duasholdings em 1500 milhões. Depois de tudo
descoberto (em Julho), o BdP obrigou ao registo das operações, o que contribuiu
para a intervenção no BES.
Entretanto, na Rua Alexandre Herculano, a escassos metros do BESI,
a equipa do procurador Rosário Teixeira continua a chocar um grande ovo. No
cardápio dos investigadores do Ministério Público, está um rol de dossiers
interligados pelo nome Espírito Santo: 140 depósitos no BES do tesoureiro do
CDS
PP, Abel Pinheiro (2004), Portucale (2005, concluído com absolvições),
Operação Furacão (2005), submarinos (2005), Monte Branco (2010) e venda da
Escom (2011) — ver edição anterior. A que se junta, agora, o pedido do BdP para
que se investigue o BESA.
De cada “moita” onde a equipa do procurador se mete, salta um coelho. Os
“polícias” especializam-se na construção de diagramas de conexões entre
particulares, sociedades e paraísos fiscais suspeitos. O que coloca outra
questão: saber qual a origem dos fundos suspeitos. O acesso (no Verão passado)
às contas na Suíça dos cinco membros do conselho superior do GES (Salgado,
António Ricciardi, José Manuel Espírito Santo, Manuel Fernando Espírito Santo e
Mosqueira do Amaral), que em 2004 receberam cinco milhões da comissão cobrada
pela Escom (do GES) pela venda ao Estado português de dois submarinos alemães
(quando Portas era ministro da Defesa e Durão Barroso primeiro-ministro), traz
informação nova. E pode possibilitar ir na peugada da origem de fundos
transferidos para outras sociedades no radar policial, com verbas associadas a
regularizações fiscais ou transacções ruinosas e suspeitas.
No meio de numerosas especulações e teorias que se multiplicam em redor das
averiguações ao GES e aos seus gestores, um dos focos pode estar relacionado
com o desaparecimento de cerca de 15 milhões de euros, que se diz ser parte do
sinal pago em 2011 pela Newbrook pela compra da Escom. Ao vendedor, a ES
Resources/Rioforte, terão chegado apenas 52 milhões de euros. A Newbrook é de
Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BESA, agora inimigo do banqueiro português,
sob averiguações das autoridades.
30 de Abril. A primeira parte da fusão da PT com a Oi
está concluída. Depois de receber da Associação Nacional de Empresas de
Tecnologia de Informação e Electrónicas o prémio Carreira, o presidente da Oi
está agora em Lisboa e convoca os quadros superiores da PT para o anfiteatro da
sede, no Edifício de Picoas. Quem esteve presente conta o que ouviu Bava dizer:
“Depois de falar num novo ciclo aberto pela fusão com a Oi, fez elogios
rasgados a Salgado, a Morais Pires e a Ricciardi, este pelo apoio à fusão, que
estendeu aos presidentes do Banco Pactual, da Gutierrez e da La Fonte
[accionistas da Oi].” E, antes de terminar a intervenção, “sugeriu que
abríssemos contas no BES, porque o BES merecia a nossa confiança. E ninguém
entendeu bem porquê”. Examinado à luz do que hoje se sabe, o conselho de Bava
permite leituras mais directas, ou, como alguns consideram, apenas se confina a
uma brincadeira.
Maio
15 de Maio. Para dar sequência a um “remédio” pedido
pelo BdP, o BES anuncia um aumento de capital de 1045 milhões de euros. O
supervisor acredita que o êxito da operação pode impedir o colapso do banco e
sabe que apenas Salgado tem capacidade para a montar. Para Carlos Costa, mais
importante do que o castigo ao banqueiro e o seu afastamento, é sempre a
sustentabilidade do sistema financeiro. E não só autoriza o aumento de capital,
como é generoso a aceitar as condições. Só que a CMVM não tem a mesma
sensibilidade e avança com uma negociação apertada que leva a chumbar a
primeira versão do prospecto de emissão de colocação das acções no público.
ENRIC VIVES-RUBIO
20 de Maio. Depois de intensas trocas de “impressões”,
Carlos Tavares acaba por dar luz verde ao BES para divulgar o prospecto, mas
com muitos avisos que deviam ter merecido a atenção dos investidores: a actual
gestão do BES pode estar de saída; a ESI foi alvo de irregularidades que a
colocam numa “situação financeira grave” e poderá afectar a credibilidade do
BES com impacto nas acções. Pela primeira vez, um regulador, a CMVM, está a
expor na praça pública as debilidades do GES. E coloca-se nova
interrogação:Sabendo a CMVM que a situação era grave não devia ter impedido o
aumento de capital?
22 de Maio. A PT tem agora 98,35% da sua tesouraria
aplicada no BES (em depósitos) e no GES: 1642,9 milhões de euros, dos quais 897
milhões na Rioforte. A restante parcela está depositada no banco e nas suas
filiais. Mas nos relatórios de gestão da PT escreve-se: “Com o objectivo de
mitigar os riscos de crédito, a política da PT é de investir em aplicações de
curto prazo, junto de instituições financeiras diversificadas, com reputação no
mercado ou tendo em consideração o respectivo rating de crédito.” Nada disto
estava a ser feito, e não era de agora. Mas alguém no Conselho de Administração
(que integra os membros da Comissão de Auditoria e onde está a Ongoing, testa
de ferro do BES) perguntou à Comissão Executiva onde estão os fundos da PT
aplicados?
Por sugestão do seu círculo de amigos, onde se incluem Proença de Carvalho
(seu advogado), Granadeiro ou Marcelo Rebelo de Sousa, o banqueiro concede ao Jornal
de Negócios a sua
última entrevista como CEO do BES: “Só sou líder da área financeira”; estou “à
disposição do banco para tudo”, “assumo a responsabilidade solidária com a
administração da ESI”, mas “não me demito”; “vou trabalhar para evitar riscos
reputacionais”, pondo em marcha “o programa de saneamento” definido pelo BdP.
A cena é mesmo de uma fita de acção (Fuga
à Meia-noite) onde Robert de Niro é um polícia que pergunta a um
mafioso: “Já ouviste falar de um tipo chamado Mardukas?” “Sim, sei quem é.” “O
que sabes?” “É um contabilista que sacou uns milhões em Las Vegas e doou-os
para caridade.” “Só que não foram poucos milhões. Foram 15 milhões.” Ainda que
o contabilista do filme seja uma figura menor, está no centro de tudo. Como,
aliás, acontece sempre em histórias complexas. Em Espanha, o ainda
primeiro-ministro Mariano Rajoy viu-se envolvido num escândalo (Los Papeles de
Bárcenas) protagonizado
por um "contabilista" do PP com "um registo secreto de
recebimentos de empresários e pagamentos a políticos). Salgado, na entrevista,
responsabiliza o do GES, Machado da Cruz, por ter “perdido o pé no meio da
situação” e manipulado as contas que estão na origem da tragédia familiar. E
lança um aviso à navegação: “Temos de ser todos solidários.”
Ups! No gabinete de José Maria Ricciardi acendem-se piscas. Um primo olha
para o chefe como primo e não como chefe. E, ao ler a frase em que Salgado pede
solidariedade, dirigiu-se para a Rua de São Bernardo. Ouvi-lo é uma empreitada:
“Não sou solidário com situação nenhuma, nunca tive conhecimento de nada e se
me perguntasses se as contas deviam ser alteradas eu dizia-te que não.” Todos
os presentes se calam. Estão convencidos de que Salgado é o super-homem
imbatível e se o contestam… a porta abre-se. Na família, acreditam que
Ricciardi vai, mais dia, menos dia, para a rua, como conta um membro do clã:
“Achámos que ele só estava a pensar nele. E ao desejar mal a Salgado, desejava
mal ao grupo.” E agora? “Há quem continue a pensar o mesmo.”
Este é um período sombrio na vida de Salgado, com o grupo à beira da
falência. E é obrigado a sair do seu casulo para pedir ajuda ao Estado. Dispara,
então, nas várias direcções. Todos o ouvem, mas ninguém se compromete. Vai
sozinho a Belém falar com Cavaco Silva, seu convidado de casa, que lhe terá
dito: pouco posso fazer.
O banqueiro chega à Praça do Comércio para uma audiência com a
ministra das Finanças, acompanhado de José Manuel Espírito Santo e de José
Honório. Os três têm grande urgência e tentam convencer Maria Luiz Albuquerque
a autorizar a CGD a emprestar 2500 milhões à Rioforte para suavizar a dívida de
curto prazo. O envolvimento do banco estatal ajudava a que o BCP viesse a
colaborar também. Pedem juros generosos. Maria Luís Albuquerque torce o nariz e
terá notado que “não dispõe de instrumentos” para apoiar o GES (não
financeiro).
No caminho está agora o primeiro-ministro. Quando entra em São Bento,
Salgado não se sente confortável. Sabe que Pedro Passos Coelho não sente
empatia por ele, mas acredita que o pode sensibilizar, pois a queda do GES terá
impacto no BES (e na PT). E admite que os efeitos colaterais se farão sentir. O
banqueiro é afirmativo: a situação é crítica, daí o pedido já endereçado de
viva voz à ministra. De pouco servirá o encontro, pois Passos Coelho é vago,
não tem nada para lhe dizer. E vai dar instruções políticas a Maria Luiz
Albuquerque para manter a recusa.
Entre outros dirigentes políticos e governamentais com quem Salgado falou
naquele período, mais de uma vez, está Carlos Moedas, na época secretário de
Estado adjunto de Passos (e agora comissário europeu). “O Moedas, o Moedas! Eu
punha já o Moedas a funcionar.” Foi a frase de José Manuel Espírito Santos
(gestor do BES) que incentivou o banqueiro, pela segunda vez, a ligar ao
secretário de Estado para que ajudasse a encontrar um plano de salvamento do
grupo. Carlos Moedas ia a conduzir quando o atendeu e lembra-se de ter pensado:
“Está assustadíssimo.” O Sol já relatou: “Carlos, está bom? Peço desculpa por
estar a chateá-lo a esta hora. Tivemos agora uma notícia muito desagradável.
Tem a ver com a procuradoria no Luxemburgo [onde a ESI e a Rioforte têm as
sedes], que abriu inquérito a empresas. Temos medo que possa desencadear um
processo complicado sobre o grupo. Porventura temos de pedir uma linha através
de uma instituição bancária. Seria possível dar uma palavrinha ao José de Matos
[presidente da CGD], para ver se recebia a nossa gente da área não financeira? Temos
garantias para dar.” Carlos Moedas tem cabeça de liberal e não apoia
intervenções do Estado, pensa como Passos Coelho. Já veio garantir que “o tema
morreu ali”, não passou do telefonema. É a sua versão.
As diligências feitas pelo clã terão chegado a José Luís Arnaut, amigo de Barroso,
e a Paulo Portas. O vice-primeiro-ministro chama a atenção de Passos para “a
gravidade de deixar cair o GES” e recebe um chega para lá. Ao presidente do BES
restam agora poucos amigos. Um deles é Durão Barroso, com quem fala várias
vezes. Barroso ainda se movimentou (por Lisboa e Luxemburgo) mas, do ponto de
vista de Salgado, depois de tudo o que terá feito pelos amigos, Barroso [a quem
o BES pagou um curso nos EUA] não se empenhou o suficiente e, hoje, o
sentimento é de desconforto. É a síndrome de quem deixa a crista da onda. Este
terá sido, provavelmente, um dos primeiros momentos em que Salgado sentiu que a
idade, 70 anos, e o ambiente não lhe permitiram “brandir a varinha
mágica”.Fecham-se todas as portas que interessam. O banqueiro já não tinha flexibilidade
para manter e gerar conivências.
Junho
8 de Junho de 2014. Salgado está na Suíça quando representantes
de três dos cinco ramos do conselho superior do GES se reúnem em casa de
António Ricciardi, em Cascais. Para além de Salgado, não comparece José Manuel
Espírito Santo. Os outros concordam em apoiar o filho, José Maria Ricciardi,
para CEO do BES, que não avança: “Não aceitei, pois percebi que não tinha o
apoio unânime da família como o BdP exigia. E também percebi ao longo dos
últimos anos que não posso contar com os meus familiares.” Foi à sua vida.
16 de Junho, segunda-feira. Concluído com sucesso o aumento de capital do BES de mil milhões, Carlos
Costa convocou o presidente para lhe dizer que tinha chegado o momento de
renunciar. No dia seguinte, Salgado e Morais Pires apanham o avião para Luanda.
Era a última esperança para resgatar o GES e o BES da falência. São recebidos
por altas figuras do regime angolano e outros investidores, mas todos negam
ajuda financeira. De regresso a Lisboa, no dia seguinte, sabem que chegou o
fim. Pouco há a fazer. A partir dali as acções do BES entram em queda livre. Num
mês vão cair de 0,96 euros (o primeiro dia de cotação pós-aumento de capital)
para 0,46 euros.
19 de Junho, quinta-feira. Os carros topo de gama estacionam em fila indiana à porta do BdP na Rua do
Comércio para deixar sair os nove membros do CS do GES. Não é a primeira vez.
Mas este encontro é nevrálgico, pois Carlos Costa vai deixar bem claro que
nenhum membro da família Espírito Santo ficará nos órgãos sociais do BES,
executivos ou não executivos. O objectivo é evitar conflitos de interesses e
proteger a instituição das lutas internas. E clarifica que a sua “ordem” vale
para todos, o que não evita uma pequena altercação, quando Ricciardi insiste na
pergunta em tom elevado: “Por que não eu?” Tanta perseverança irrita o
governador: “O senhor não me fale nesse tom. Já disse que nenhum membro da
família pode estar na CE do BES.” Ricciardi, que vai ser autorizado a manter-se
como presidente do BESI, justifica-se por ouvir mal de um ouvido.
Antes de sair, como quem não quer a coisa, o presidente do BES soltou o
nome de Morais Pires para CEO. O governador ficou pasmado. É que Morais Pires
tinha o registo de idoneidade suspenso. Nada disse, apenas que esperava que o
próximo CEO fosse indicado na assembleia geral (que será convocada para daí a
um mês) e que a partir dali é que se pronunciaria. O que significava que
durante um mês o trono ficava vazio e Salgado reinava como interino.
Quando deixam o BdP, é provável que apenas Ricciardi e Ricardo Salgado
tenham compreendido plenamente a mensagem de Carlos Costa. Os restantes primos
não acreditam ainda no que lhes está a acontecer, pois sempre acharam que ia
surgir um protector a dar a mão.
O episódio do BdP, em que afasta todos os Espírito Santo, é o momento de
glória de Carlos Costa, elogiado pela coragem. Mas tem ainda mais leituras:
prova-se que o governador tinha meios para forçar a saída de Salgado meses
antes sem precisar de invocar a lei, tal como acabou por fazer; a família não
percebeu que Morais Pires não resistia ao crivo da comunicação social, pois
começaram a sair notícias sobre ligações a offshores e infracções fiscais que o
levaram, no final de 2012, a regularizar as dívidas ao fisco.
20 de Junho, sexta-feira. Os jornais trazem na primeira
página que Ricardo Salgado renuncia ao BES. Ora, a CMVM não podia permitir a
dúvida sobre a saída e interrompe a cotação do banco e da ESFG à espera de
informação. O GES confirma o afastamento de Salgado e que Morais Pires será
proposto para CEO e o ex-deputado do PSD Mota Pinto será chairman. Nenhum deles
assumirá o cargo. Para dar corpo a uma proposta do BdP de retirar os
accionistas de referência do BES dos órgãos sociais (comissão executiva e
conselho de administração), com poder de intervenção, o BdP imaginou uma
estrutura nova, a que chamou “conselho estratégico”, para onde Salgado foi
nomeado. Mas a estrutura seria publicamente criticada e morreu ali.
Assim que o afastamento de Salgado do BES passou a ser um facto, legitimou
os rumores que há semanas circulavam nos mercados sobre os graves problemas do
grupo. E, como não foi acompanhado de uma alternativa credível para o
substituir, a pressão para os clientes levantarem as suas poupanças, que
começara duas semanas antes, acentua-se (de Junho até Agosto, fala-se em saídas
de quase 10 mil milhões, mas o valor nunca foi confirmado).
Ao final da tarde, Ricciardi emite um comunicado a informar que vai separar
o BESI do BES e sublinha que o supervisor lhe “reconheceu a idoneidade e o
registo do seu mandato”, podendo, assim, dar lastro à sua estratégia de
banqueiro.
Fim-de-semana. Os dois primos direitos vão jogar ao rato e
ao gato. Ricardo Salgado não nasceu para dirimir conflitos. Decide demitir
Ricciardi e convoca-o para uma comissão executiva na quarta-feira seguinte. Antes,
sai uma notícia no Diário Económico a dar conta da intenção. Então,
Ricciardi envia à reunião em sua representação o seu braço direito Fernando
Cary, a quem Salgado confirma que vai afastar o presidente do BESI. No final,
Salgado emite um comunicado a desautorizar Ricciardi: “O BES não vai autorizar
o BESI”, onde detém 100% do capital, autonomizar-se. O contar de espingardas
leva o vice-governador do BdP a mandar calar os dois. O mercado bancário é
pequeno demais para tantas brigas.
Ricciardi
fica autorizado a manter-se presidente do BESI MIGUEL MANSO
24 de Junho. Passos Coelho demarca-se: “É conhecido,
porque já foi dito [por Salgado], que o GES tem problemas que precisam de ser
resolvidos, estará a trabalhar nesse sentido, teve ocasião de nos comunicar as
ideias que tem quanto à solução desses problemas. Não quero fazer comentários,
porque respeitam a um grupo privado com os seus interesses legítimos e normais,
mas que não cabem na alçada directa nem do Governo nem neste caso do supervisor.”
“Nos últimos anos,
deu-se uma mudança de paradigma na economia”, observou uma fonte de São Bento,
que justifica assim a não intervenção do Governo no BES e GES: “Está em causa
um grupo privado. O primeiro-ministro entende que um banco pode ir à falência
desde que os depósitos sejam salvaguardados, pois a obrigação do Estado não é
meter dinheiro dos contribuintes num grupo insolvente e, para mais, com
comportamentos ilícitos.” Por que não teve o Governo um gesto quando, em 2013,
os problemas se revelaram? “Não tinha a fotografia completa do que se passava
no GES. Só o BdP concentra toda a informação e, pelo seu estatuto de
independência face ao poder político, não revelou o que sabia.” Adianta: “A
verdade é que o primeiro-ministro esteve sempre entre a espada e a parede e ou
impedia o colapso e interferia na autonomia do BdP — que, aliás, sempre
garantiu ter a situação controlada — e sujeitava-se a críticas, ou não fazia
nada, como aconteceu, e deixava o BdP actuar”.
26 de Junho. Surpresa? Torna-se evidente que o BES usa a
PT como se fosse a sua casa. O Expresso anuncia que a PT tinha 900
milhões de títulos de dívida da Rioforte que vai perder. A revelação deste
episódio internacionaliza o tema GES, desde logo alastrando-o ao Brasil. Num
relatório de 10 de Julho, sobre as aplicações de excedentes de tesouraria no
GES, a Comissão de Auditoria revela que a exposição ao BES/GES sempre foi
elevada, entre um mínimo de 36,8% (em Julho de 2008) e um máximo de 98,6% (em
Abril de 2014). E como, desde 2012, que o resgate a um banco envolve
accionistas e obrigacionistas, a PT (que tem 2% do BES) é atingida de dois
lados: como investidor, financiador (Rioforte). Seria afectada como cliente se
não tivesse levantado os depósitos dias antes da falência. No final, Bava, Granadeiro
e Pacheco de Melo vão acabar por se demitir da OI e PT e a sua acção está a ser
alvo de inquéritos pela CMVM.
Passos Coelho não
tinha a fotografia completa do que se passava no GES. Só o BdP concentra toda a
informação e, pelo seu estatuto de independência face ao poder político, não
revelou o que sabia
27 de Junho. A ministra das Finanças está no Parlamento
a falar do tema do momento: o BES “não coloca riscos para a estabilidade
financeira”; “o recente aumento de capital foi um sucesso”; “tudo fiz no âmbito
das minhas competências para estar a par do que se passa que tenha relevância
para a estabilidade financeira”; “a acompanhar a situação há largos meses”.
Julho
A partir daqui, a
estratégia de passinhos curtos do BdP e de separação do BES e do GES não
resiste. Afinal era ao BES que os problemas do GES iam desaguar. Carlos Costa e
o Governo tinham avaliado mal a situação e, por isso, a estratégia seguida para
estancar a “sangria” não se revelou a adequada. E tudo se descontrolou. Mas é
verdade o que diz o governador: quando há gestores mal-intencionados, não há
forma de proteger um banco. Apenas quando são afastados a tempo.
O BdP tenta ainda
negociar com o Governo a solução da via da recapitalização com empréstimo da
troika, com CoCos (obrigações convertíveis em acções) e entrada directa do
Estado — um esquema idêntico ao usado no Banif. Mas não há vontade política e a
ministra das Finanças avança com o argumento dos contribuintes para recusar. E
não soube avaliar, ou não deu importância aos efeitos colaterais da opção do
governo.
Um analista coloca a questão nestes termos: a solução da linha da troika teria sido preferível, pois poupavam-se os outros accionistas (não infractores), os obrigacionistas e o Estado receberia os juros dos CoCos e seria reembolsado pelo empréstimo. Outro defende que o banco não teria condições de pagar os juros dos CoCos e era um risco grande para os contribuintes.
Há outra interpretação.
A solução adoptada através do Fundo de Resolução de injectar 4900 milhões de
euros no Novo Banco via sistema financeiro público e privado (com um apoio de
3900 milhões do Estado) é a mais tranquilizadora para os contribuintes. Mas
apresenta riscos: dificilmente a venda do Novo Banco, que será criado a partir
do BES a 3 de Agosto, será suficiente para recuperar o que lá foi investido. “E
o Estado perderá sempre alguma coisa, pois a CGD tem 30% do Fundo de Resolução
e, como vai ter de contabilizar as perdas, a banca distribuirá menos impostos.”
14 de Julho. Depois de o BdP ter descoberto que Salgado
e Morais Pires tinham aproveitado nas últimas semanas para tomar decisões
contrárias às suas recomendações (carta de conforto, triangulação de movimentos
para financiar a ESI e a Rioforte), Carlos Costa pede a Vítor Bento, convidado
por Salgado para ser CEO, para tomar posse antes de os accionistas reunirem, a
30 de Julho.
Os dados estavam à
vista de todos. Mas não se criou uma onda de indignação, levando o Parlamento a
questionar já em 2013 porque havia tantas notícias sobre o tema. Por que se mantinha
um banqueiro à frente do segundo maior banco português sobre quem pendiam
dúvidas de bom comportamento fiscal? Perante o que aconteceu, há quem troque
olhares entre si. E pergunte: o colapso do BPN em 2008 terá sido mesmo um
acidente? Ou esconde antes um padrão? O que revela é a grande fragilidade das
instituições que estruturam a vida pública nacional.
23 de Julho. O DCIAP tem andado de mão no
gatilho e a fazer buscas em escritórios de advogados, gabinetes de consultoria,
no GES e no novo escritório de Ricardo Salgado, que já tinha o acesso vedado ao
BES. As filiais do BES norte-americanas foram também visitadas pelas
autoridades locais. É provável que, a partir de agora, o banqueiro passe a
invejar o anonimato.
24 de Julho. Foi um dos homens mais influentes do país,
que recebia em casa Presidentes da República, primeiros-ministros, ministros,
deputados, autarcas, empresários, advogados... Ao 15.º andar da sede do BES
desembocava muita gente. Todos o cortejavam. Foi assim até 24 de Julho, quando,
por volta das 09h00, uma viatura da PJ estacionou à porta de sua casa, em
Cascais, junto à Boca do Inferno, para o trazer para ser interrogado no
Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) no âmbito do processo Monte
Branco. Na véspera, disponibilizara-se para ir pelo seu pé até ao tribunal. Mas
a justiça quis mostrar o seu troféu, como um sinal de que chega aos poderosos.
E quando chegou a Lisboa as televisões esperavam.
3600
milhões
de euros foram os prejuízos que levaram à falência do BES — os maiores de
sempre da economia portuguesa
10h00. O juiz Carlos
Alexandre começa a abrir o ovo chocado no gabinete do procurador Rosário
Teixeira. Salgado esteve a falar durante oito horas, o que, para muitos
analistas, indicia vontade de colaborar e de revelar segredos. A comunicação
social refere que o juiz procura o rasto de milhões do sinal do negócio de
venda da Escom e que nunca chegaram à Rioforte. Se é verdade ou não, só os
investigadores saberão. Mas assim que se começou a falar de que havia uma sexta
figura, de que se desconhece o nome, a receber “bónus” do consórcio alemão que
vendeu, em 2004, os dois submarinos à Marinha portuguesa, ficou tudo alerta.
Eram cerca de 18h00
quando o banqueiro deixou o tribunal na condição de arguido e sob caução de
três milhões de euros. E indiciado por crimes de burla, abuso de confiança,
falsificação e branqueamento de capitais. Será culpado? Não terá culpa? As
suspeitas são graves e não permitem voltar a olhar para ele como se nada
tivesse feito. O caso será analisado por uma comissão de inquérito parlamentar.
A cegueira da fuga em
frente e do medo de encarar a realidade levaram o GES a empurrar o lixo para
debaixo do tapete à espera de melhores dias. E, assim, minutos depois de
Ricardo Salgado ter deixado o tribunal, a ESFG, dona do BES, pediu a protecção
de credores junto das autoridades luxemburguesas. Nas horas seguintes, o
castelo de cartas desmoronou-se. Uma semana depois, o BES faliu com prejuízos
históricos de 3600 milhões — os maiores de sempre da economia portuguesa. A
implosão traduziu-se no fim de um centro de poder (que gerou muitas
conivências) considerado o mais influente da vida política, social e financeira
em Portugal dos últimos 15 anos. Ricardo Salgado sempre se considerou um
cidadão acima de qualquer suspeita e ainda está em estado de choque.
PRIMEIRA PARTE DA QUEDA DO
BES
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