Na ressaca do campeonato do mundo de futebol, o Brasil faz balanços, autoanálise e prepara-se, sem entusiasmo, para as presidenciais de outubro. O torneio deixou marcas, para o bem e para o mal, mas não deverá influenciar o resultado das eleições
Hugo Gonçalves, no Rio de Janeiro
Para a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, a Copa do Mundo começou mal. Depois de alguns meses em que a imprensa estrangeira antecipou que o torneio seria um desastre, a Chefe de Estado viu o desagrado dos locais, no jogo de abertura, transformado em vaias e em insultos. Rapidamente, a sua equipa, com ajuda de algumas intervenções do ex-presidente Lula da Silva, tentou tomar conta dos acontecimentos, e sublinhou que os desaforos gritados nas bancadas eram provenientes de uma elite branca, urbana, que não representava o país. Também rapidamente, foi lembrado por oponentes e colunistas que tal elite branca estava em exclusividade nos estádios, porque, ao contrário do que anunciara Lula em 2007 - que a Copa seria para todo o povo brasileiro - o torneio, pelos preços das entradas, não permitiria a presença da maioria da população - negra ou mulata e financeiramente incapaz de caber no círculo apertado da elite.
Durante o resto da Copa, Dilma Rousseff e os outros candidatos, Eduardo Campos e Aécio Neves, procuraram sintonizar o discurso político com o que acontecia ao longo do campeonato, dentro e fora dos recintos. A Presidente afastou-se dos estádios, mas esteve presente nas redes sociais. Quando Neymar fracturou uma vértebra, Dilma Rousseff juntou-se à torrente de solidariedade com o atleta e uma mensagem na Internet dizia: "Sua face de dor (...) feriu meu coração e o de todos os brasileiros." No Twitter, após a goleada com a Alemanha, a conta da Presidente publicou: "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima." Numa fotografia de apoio a Neymar, Dilma Rousseff aparece a fazer um T, com os dois braços, gesto que o craque do excrete cunhou como seu, após um golo, e que significa "É tóis"
Universos paralelos
A Copa do Mundo é um estado de excepção, especialmente no Brasil, onde se decreta feriado em dia de jogo e a selecção é, como diria Nelson Rodrigues, a pátria de chuteiras. Os brasileiros têm no futebol - e no seu sucesso - um traço importante da sua identidade. O amor pelo país, bem como a sua afirmação, confundiram-se sempre com o desempenho da selecção de futebol. Além disso, durante estes 32 dias, as emoções andaram exacerbadas. Em apenas seis minutos - tempo que os alemães demoraram a marcar quatro dos sete golos com que eliminaram o Brasil -, o optimismo inquebrável da torcida passou a desespero vexatório. Nos dias seguintes, parecia que todo um país, de mãos na cara pela vergonha, sentia a derrota como algo profundamente pessoal, provocando um sentido de demérito e uma tristeza tão contundentes como havia sido a esperança até chegarem os alemães.
Dentro e fora do campo, com a ajuda do insuflado estado emocional, este mês parecia ter as qualidades de uma telenovela viciante, cheio de reviravoltas e choro, momentos dramáticos e namoros multinacionais entre torcedores, protestos controlados, queda de um viaduto, milhares na rua festejando todas as noites o espírito da Copa e até o martírio de um dos protagonistas - Neymar - numa cadeira de rodas.
Foi bonito, intenso e memorável. Mas até que ponto um mês tão atípico e marcante na psique colectiva deixa uma marca duradoura nos brasileiros e nos seus governantes? Até que ponto uma realidade alternativa, hiperbolizada, se não mesmo alienante, que dura um mês, terá impacto na vida a que os brasileiros regressam agora e nas eleições presidenciais de Outubro? Se tivermos em conta todas as eleições brasileiras posteriores a Copas, o impacto será muito frágil, embora desta vez seja inquestionável que a organização do evento, em casa, contará no debate eleitoral.
A pátria de chuteiras
O temor mediático de que o Mundial fosse desastroso ajudou Dilma e a organização. Todas as Copas do Mundo seguem um guião bem estipulado pela Fifa, é quase impossível meter o pé na argola de forma desastrosa. Por isso, comparando os resultados com as expectativas apocalípticas que antecederam a Copa, tudo parece ter corrido bem, ainda que apenas 88 obras das 167 prometidas estivessem terminadas a tempo. Houve protestos, mas incapazes de alterar a logística do Mundial. Os aeroportos não colapsaram e a mobilidade, nas grandes cidades, tornou-se possível porque, em dia de jogo, decretava-se meia jornada ou feriado. Simon Kuper, do Financial Times, que já cobriu sete Copas do Mundo, sintetizou assim a prestação das autoridades: "A boa organização não é algo que indique ter-se o Brasil, de repente, transformado num país desenvolvido e maravilhosamente administrado." Kuper, como muitos outros, acredita que grande parte do sucesso da Copa se deve à qualidade dos jogos, das torcidas e do povo brasileiro - que recebeu bem e viveu o evento como em nenhum outro país.
Assim que o Brasil perdeu com a Alemanha, iniciou-se o debate e a análise da hecatombe. A Folha de São Paulo dedicou o seu caderno cultural de fim de semana, em exclusivo, ao tema "7 x 1", e muito se falou e escreveu sobre o percurso emocional dos brasileiros e da selecção, nesta Copa, como se o futebol fosse mesmo uma metáfora da vida, em que se confundem a nação e a pátria de chuteiras - uma situação que o cronista António Prata analisou assim: "O fracasso do time serve para escancarar o atraso, a incompetência, a ganância, a burrice e a má fé que administram o nosso futebol, mas não deve ser estendido ao país como um todo. Claro que os defeitos da cartolagem (lobbies) brotam de certas vicissitudes nacionais, mas a gente não se resume a eles." Muitos dos problemas do futebol brasileiro, que resultam das práticas mencionadas por António Prata, são também os problemas do Brasil.
Por isso, ainda que não se confunda o país com a selecção, foram inevitáveis as comparações. De certa maneira, é como se a estrutura do futebol brasileiro, além de padecer dos males do Estado e do país, tivesse partilhado da narrativa triunfalista do Brasil, iniciada por Lula da Silva e prosseguida por Dilma Rousseff - uma narrativa que contrasta cada vez mais com o dia a dia difícil dos brasileiros.
Durante o torneio, a torcida brasileira, embalada pelas vitórias da selecção, foi acreditando no título e nesse discurso que, segundo a jornalista Eliane Brum, da Folha de São Paulo, anda próximo da auto ajuda: "Esta foi a selecção do pensamento mágico e, nesse aspecto, não podia ser mais brasileira, nesta Copa de 2014. Não o pensamento mágico como fonte de explosão criativa, mas como um produto."
Depois do optimismo das vitórias, veio a goleada na semifinal e, da mesma maneira que o Brasil acordou, no ano passado, saindo para as ruas em protestos porque o país não era aquilo que se fazia crer, a torcida também despertou com a derrota acachapante. "Vergonha" e "humilhação" foram as palavras mais utilizadas pelos brasileiros e pelos jornais. De repente, a nação já não se revia naquela pátria de chuteiras, tal como os brasileiros não se revêem nos seus governantes.
O legado dos elefantes brancos
Não são as eleições o que mais parece preocupar os brasileiros. O fim da Copa, em oposição ao regresso do campeonato nacional, já esta semana, com estádios vazios e jogos modorrentos, está na ordem do dia das piadas dos cariocas. Passados os primeiros tempos do trauma da derrota com a Alemanha, os brasileiros estão ainda num estado nebuloso - entre a ressaca e a expectativa. E se bem que as eleições estejam próximas, a verdade é que a política partidária tem muito menos interesse para os brasileiros do que o campeonato de que se queixam com frequência. A crise de participação e representação política não será curada com o bulício eleitoral.
Agora que se começam a fazer balanços, as maiores relíquias da Copa parecem ser os estádios e a imagem positiva que levaram consigo os visitantes e os jornalistas estrangeiros, embora os estádios, que custaram um terço do orçamento da Copa (ver caixa), simbolizem também o constante despesismo e má gestão de fundos, no Brasil. O estádio de Manaus, como outros, não tem uso previsto e dificilmente irá gerar dinheiro ou sequer pagar os custos de manutenção. No final das contas, o país gastou mil milhões de euros a mais do que havia sido estimado quando se projecto o torneio.
Das 88 obras concluídas, algumas irão beneficiar as populações, mas os brasileiros, tal como declararam nas ruas, no ano passado, consideram-nas ainda um legado pífio se tivermos em conta as necessidades prementes na saúde, educação, saneamento, mobilidade urbana, no combate à corrupção ou ao crime organizado. E, porque se confrontam com essas carências e obstáculos diariamente, os brasileiros não esquecem tamanha evidência, apesar do sucesso da Copa e do optimismo durante o torneio.
Haverá, com certeza, ganhos impalpáveis por agora, como a abertura do país e da sua população ao estrangeiro, a boa imagem do Brasil ou possíveis dividendos futuros no turismo. Mas milhões de brasileiros continuarão, nos anos mais próximos, a penar nos transportes públicos e milhares de políticos com cadastro irão tentar candidatar-se nas eleições estaduais e legislativas.
Camões, gigantes e mais do mesmo
O ânimo do país até pode ter mudado durante a Copa - mais positivo e desligado dos males quotidianos -, mas o Brasil continua a ser o mesmo depois que se apagou a luz do Maracanã, estando agora, talvez, ainda mais ciente daquilo de que é capaz e daquilo que precisa de conserto. Tanto Dilma Rousseff como as possíveis alternativas na corrida à presidência representam tantas mudanças como uma eventual continuidade de Scolari na selecção brasileira. Estas eleições anunciam o mesmo vazio que se seguiu às manifestações no ano passado, quando a Presidente prometeu que mudaria a Constituição, o sistema eleitoral e que travaria um combate mais apertado à corrupção. Passou um ano, nada aconteceu.
Dilma Rousseff que, durante o torneio, viu a sua taxa de aprovação subir de 35 para 38 pontos, voltou a ser vaiada e insultada pelos adeptos durante a final. Resta saber se, agora que o aparato policial da Copa desmobilizou, se reiniciarão as manifestações ou os protestos violentos, e até que ponto a insatisfação e mal estar social, que precederam a Copa, podem regressar mais pujantes ao ponto de influenciar o resultado das eleições.
Não é previsível, no entanto, que a Copa sirva para perder ou ganhar a presidência. Dilma lidera as sondagens, mas, na ressaca de um mês intenso de torneio, e com a falta de perspectiva de mudança política nestas eleições, a campanha adivinha-se pouco mobilizadora. Carlos Heitor Cony, escritor e jornalista, usou o futebol para explicar o desinteresse geral pela política e anunciar que, agora que a festa acabou, todos irão recordar-se novamente da inevitável imutabilidade do status quo: "Pulando da Copa para as eleições, em Outubro: acontece quase a mesma coisa (a falta de craques) E a razão para essa indiferença é a ausência de um Adamastor entre os candidatos. Citando Camões: "Uma nuvem que os ares escurece, sobre nossa cabeça aparece." Na corrida eleitoral, como no Mundial, faltam gigantes.
Mundial de Futebol - Os números finais
Investimento total - 10 mil milhões de euros
Desvio orçamental - mil milhões de euros
Investimento em segurança - 700 milhões de euros
Telecomunicações e turismo - 300 milhões de euros
Transportes, estádios, aeroportos e portos - 8 mil milhões de euros
Estádios - 3 mil milhões de euros
Benefícios no PIB deste ano - aumento de um por cento
Empregos formais criados - 1 milhão
Impacto previsto na economia - 10 mil milhões de euros
Turistas - 600 mil
País com mais visitantes - Argentina, 101 mil
Picado daqui
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