O
manifesto português "pode ser um gatilho para a mudança na Europa"
O economista dinamarquês Bengt-Ake
Lundvall, especialista em sistemas nacionais de inovação e "economias que
aprendem", assinou o manifesto dos 74 pela reestruturação da dívida
portuguesa, prevendo que se possa estar a chegar a um "momento político de
rutura" na Europa.
"Podemos estar a aproximarmo-nos de
um momento político de rutura em que a frustração generalizada entre os
cidadãos europeus obrigue a uma direção política mais clara e
construtiva", diz o economista dinamarquês Bengt-Ake Lundvall, que apoiou o
Manifesto dos 74 pela reestruturação da dívida portuguesa, encarando-o como
"um gatilho para a mudança" na Europa.
Para o professor do Departamento de
Economia e Gestão da Faculdade de Ciências Sociais de Aalborg, na Dinamarca, e
do Colégio Universitário de Sciences Po em Paris, a
gestão da crise das dívidas soberanas desde 2010 pela orientação alicerçada na
austeridade está a empurrar o
"projeto Europa" para a sua liquidação.
"Deste modo, a única estratégia
possível é propor o que parece estar fora do alcance. Sabemos que a História
nos reserva sempre surpresas de vez em quando - esperemos por uma surpresa
positiva", sustenta.
O que o levou a assinar o Manifesto
português?
Principalmente porque as negociações por
uma reestruturação da dívida portuguesa levantarão assuntos mais vastos
relativos a mudanças na arquitetura económica e política da Europa - mudanças
que eu vejo como necessárias para evitar que a próxima crise provoque um
desastre completo para o projeto europeu. O Manifesto assinala também um
protesto contra a ditadura do "mercado" e contra o que vejo como
políticas erradas de austeridade na Europa.
O que significam exatamente
"assuntos mais vastos" que estão para além do problema específico da
dívida portuguesa?
Reestruturar a dívida portuguesa ou de outros países membros atualmente vítimas das políticas de austeridade não trará, por si só, as mudanças necessárias. Mas dá um sinal forte à elite europeia de que é preciso repensar o "projeto Europa".
Reestruturar a dívida portuguesa ou de outros países membros atualmente vítimas das políticas de austeridade não trará, por si só, as mudanças necessárias. Mas dá um sinal forte à elite europeia de que é preciso repensar o "projeto Europa".
Portanto, o Manifesto português é uma
espécie de primeira jogada?
Pode tornar-se um gatilho para a
mudança. Podemos estar a aproximarmo-nos de um momento político de rutura em
que a frustração generalizada entre os cidadãos europeus obrigue a uma direção
política mais clara e construtiva. Isso poderá tornar mais difícil para a elite
política europeia catalogar como populistas todas as reações críticas à atual
estratégia europeia. Exige que todos os que querem uma Europa que seja
competitiva, democrática e justa vão para além dos interesses nacionais e
comecem a trabalhar em conjunto por um "projeto Europa" diferente,
onde a solidariedade internacional vão de mão dada com a proteção dos cidadãos
mais fracos em cada país.
O que é que correu mal no "projeto
Europa"?
A atual arquitetura europeia é
disfuncional e isso foi auto-inflingido. Durante décadas, a estratégia da elite
europeia foi avançar com a integração financeira e comercial sem avançar com a
integração política e social. Os federalistas europeus iniciais julgavam que a
integração económica seria seguida mais ou menos automaticamente pela
construção de uma estrutura política. O passo mais arriscado dado foi a criação
de uma união monetária que juntou debaixo de uma mesma moeda (o euro) economias
com estruturas económicas muito distintas. Foi o ato mais extremo de pura fé e
de jogo político por parte dos federalistas europeus. Portugal é uma das
vítimas deste passo perigoso.
Em que sentido a crise financeira
global, e depois a gestão da crise das dívidas dos periféricos do euro, agravou
essa evolução?
Depois da crise de 2008 tornou-se ainda
mais claro que a política económica europeia ficou subordinada ao
"mercado" e que o que era considerada como a "política
necessária" - por vezes apresentada como "o pacto de competitividade"
- resultou numa ampliação, e não diminuição, das diferenças em bem-estar entre
o Norte e o Sul da Europa. Ora isto está em contradição direta com os
fundamentos do projeto europeu.
A crise financeira global foi uma
espécie de "teste de esforço" para o projeto europeu?
E a Europa não passou esse teste. A
resposta de curto prazo foi insuficiente e deixou as nações mais vulneráveis e
os cidadãos em situações precárias. Por outro lado, a estratégia de longo prazo
- o tal "pacto de competitividade" -está em conflito com os
princípios básicos do projeto europeu. Ainda que seja verdade que a União
Europeia não se partiu com esta crise, também é verdade que a atual estratégia
de longo prazo não a protege para a próxima crise.
O que é necessário para mudar o rumo?
Há elementos na Estratégia de Lisboa que
podiam ter contrariado as diferenças estruturais e amortecido os efeitos da
crise, como por exemplo a construção de uma economia socialmente coesa baseada
na aprendizagem e com melhores empregos. Em vez disso, o dogma neoliberal
marcou a agenda para a Europa e, agora, todos pagamos o preço.
Como é que se explica que as políticas
de "austeridade expansionista" e de "desvalorização
interna" capturaram a gestão da crise das dívidas soberanas dos
periféricos desde a cimeira de Madrid de abril de 2010?
Houve uma mudança clara de direção no
projeto europeu ainda muito antes disso. A "Estratégia de Lisboa"
começou a ser diluída por volta de 2005. Repare, os que lançaram os fundamentos
do projeto europeu depois da 2ª Guerra Mundial eram pragmáticos, quanto a
filosofia económica. Estavam abertos ao planeamento governamental e à
propriedade pública e tinham uma compreensão realista dos limites da economia
de mercado pura. Esse pragmatismo foi, depois, minado quando a filosofia
económica neoliberal se tornou dominante nas Universidades e nos Ministérios de
Finanças. À medida que o neoliberalismo se apoderou gradualmente da Comissão
Europeia, e sobretudo das suas direções económicas, desviou o projeto europeu.
Em suma, esse grupo radical 'apagou' o
projeto europeu num momento crítico de crise?
De facto, é notável como os líderes
europeus adotaram uma posição defensiva face à crise económica. É difícil
imaginar uma situação que desse mais margem de manobra aos líderes europeus
para mostrar aos seus cidadãos a utilidade de serem membros de uma comunidade
europeia mais vasta. Numa situação similar, o presidente Roosevelt lançou nos
Estados Unidos o 'New Deal' assinalando uma preocupação especial com o
desemprego e com as regiões mais pobres do país.
O que aconteceu, então, na União
Europeia?
Os líderes nacionais da União foram
incapazes de avançarem com transferências orçamentais e acordaram, por isso,
num conjunto de soluções temporárias e incompletas. Isso aconteceu em simultâneo
com esse novo discurso político de indignação moral - com os políticos do Norte
a falarem da corrupção no Sul como a principal causa da crise. A crise testou o
projeto europeu e os resultados não foram lisonjeiros. Depois de cinco anos de
crise, os indicadores económicos do rendimento e do emprego ainda permanecem em
níveis abaixo dos imediatamente anteriores à crise.
Mas isso significa que uma iniciativa
isolada em Portugal não é suficiente. É precisa uma iniciativa europeia?
Como disse no início desta entrevista,
uma iniciativa de reestruturação de dívida pode resultar num abalo da atual
ordem económica e política. O que é necessário é um repensar radical das
relações entre a integração económica e a integração social e política.
Precisamos de líderes europeus que sejam honestos e digam que uma integração
económica sem uma integração política e social apenas gera mais desigualdade e
instabilidade.
O que deverão fazer os líderes europeus?
Um sinal importante pode ser fazer uma
paragem na integração económica enquanto a Europa começa a lançar alguns
elementos de uma política de investimento social e orçamental comum. Pode
começar com medidas modestas relacionadas com o salário mínimo e apoios ao
desemprego. Também, programas europeus para melhorar as competências dos menos
qualificados, desenvolver a flexisegurança (flexibilidade com segurança) no
mercado de trabalho e sistemas de ensino aberto. Isso poderia dar o sinal de
que a Europa pretende construir a competitividade na base da competência e não
dos salários baixos. Investimentos "verdes" também mostrariam que a
Europa toma em linha de conta a sobrevivência da próxima geração.
Mas isso é politicamente realizável no
atual contexto europeu?
O que parece ser realizável hoje em dia está a levar-nos para muito próximo do fim do projeto europeu. Deste modo, a única estratégia possível é propor o que parece estar fora do alcance. Sabemos que a História nos reserva sempre surpresas de vez em quando - esperemos por uma surpresa positiva.
O que parece ser realizável hoje em dia está a levar-nos para muito próximo do fim do projeto europeu. Deste modo, a única estratégia possível é propor o que parece estar fora do alcance. Sabemos que a História nos reserva sempre surpresas de vez em quando - esperemos por uma surpresa positiva.
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