(...)Gonçalo Portocarrero sabe que eu sei que ele sabe que nenhuma mulher aborta de ânimo leve ou porque sim. Sabe que, apesar do folclore, tantas vezes pernicioso a um lado e a outro das barricadas morais, ninguém defende o aborto livre do tipo "a barriga é minha" ou "em cada mulher uma abortadeira". O que se pretende e pretendeu, sem prejuízo do inalienável direito à vida, é acabar com uma prática sucedânea da santa inquisição em que, como aconteceu nos julgamentos da Maia em 2002 ou de Aveiro em 2004, as mulheres sejam humilhadas e devassadas em público. Isto já para não falar daquelas, demasiadas, que morreram por serem forçadas a recorrer ao vão de escada. E isso é, a par de outros, um avanço civilizacional que não tem preço. O exercício do sacerdote é pois ética e intelectualmente desonesto porque, na melhor prática estalinista, deturpa e reescreve as palavras de Álvaro Cunhal e ignora deliberadamente a verdade factual de quem defendeu a despenalização da interrupção voluntária da gravidez.
Mas é também um ato de cobardia. Ao descontextualizar as palavras do antigo líder comunista, redigidas há mais de 70 anos, Gonçalo Portocarrero sabe que não será contraditado simplesmente porque o autor já cá não está para se defender e repor a verdade.
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