A
verdade da mentira
A
entrevista com Ricardo Noronha, investigador do Instituto de História
Contemporânea e autor de um livro acabado de sair sobre o 25 de Novembro
discorre sobre um dos episódios mais controversos da história recente de
Portugal. Durante décadas, a narrativa dominante apresentou esse dia como a
derrota de uma tentativa de golpe da esquerda “radical” contra as forças
“moderadas”. No entanto, são vários os factos que mostram que estava em marcha
um plano para acabar com a revolução.
Memória
O
25 de Novembro que não nos contam: censura, saneamentos e prisões
Continua
a ser um dos episódios mais controversos da história recente de Portugal.
Durante décadas, a narrativa dominante apresentou esse dia como a derrota de
uma tentativa de golpe da esquerda “radical” contra as forças “moderadas”. No
entanto, são vários os factos que mostram que estava em marcha um plano para
acabar com a revolução. Com a revolução de Abril, houve manifestações de júbilo
nas ruas, imprensa finalmente livre e libertação de presos. Novembro trouxe o
controlo militar, o regresso da censura e o saneamento de jornalistas e a
prisão de militares. Para compreender melhor as dinâmicas e os interesses em
jogo nesse momento decisivo, conversámos com Ricardo Noronha, doutorado em
História pela Universidade Nova de Lisboa e investigador do Instituto de
História Contemporânea (NOVA FCSH), que acaba de lançar um livro dedicado ao
tema.
Porquê
este livro?
O
cinquentenário faz com que haja, obviamente, uma profusão de discursos sobre o
que aconteceu no 25 de Novembro e, sobretudo, um grande investimento sobre a
carga simbólica da data. E, nesse processo, sei que vai haver mais atenção,
mais interesse e curiosidade sobre o que aconteceu e abre-se espaço para um
trabalho historiográfico poder ter mais público do que de outra maneira teria.
E, portanto, há uma intervenção historiográfica, com base em conhecimento
acumulado ao longo dos anos, de várias perspectivas, vários testemunhos, vários
relatos, e, simultaneamente, a identificação de um momento político, que
corresponde à tentativa, sobretudo por parte da direita em Portugal, de se
apropriar da carga simbólica desta data e projetar sobre ela um significado que
está completamente ao arrepio daquilo que aconteceu.
Entende,
portanto, que a direita está a instrumentalizar o 25 de Novembro?
Sempre
houve uma instrumentalização política do 25 de Novembro. Logo no dia a seguir,
no dia 26 de novembro, já há uma série de discursos e um conjunto de narrativas
para oferecer à data uma carga simbólica, sobretudo em torno da noção de
liberdade e totalitarismo, ou radicalismo e moderação. E, durante muito tempo,
a linha divisória, se quisermos, que se traçava a partir da invocação da data,
traçava a esquerda. No fundo, de um lado, a extrema-esquerda, o Partido
Comunista Português e as pessoas que se reviam, de alguma maneira, nessa área,
e depois todas as pessoas que se posicionam, de grosso modo, mais próximo do
PS, do Documento dos 9, e que alinhavam com o 25 de Novembro. A direita até
estava relativamente distante disto, porque olhava, com razão, na verdade, para
o que aconteceu naquela data como um confronto, fundamentalmente, entre estas
duas sensibilidades, nas quais a direita militar, que seria basicamente os
heróis que esta direita hoje em dia invoca, teria desempenhado um papel
relativamente secundário.
Com
a passagem do tempo, a figura do Jaime Neves veio emergir com uma importância
que não tinha tido inicialmente. Ramalho Eanes e Melo Antunes eram os grandes
protagonistas. E isso permitiu também à direita criar ali um conjunto de
referências simbólicas em torno do 25 de Novembro.
O
que foi afinal o 25 de Novembro?
Foram
várias coisas. Eu acho que em primeiro lugar, e foi daí que eu quis começar,
uma sublevação de uma unidade militar em específico, que são os paraquedistas.
Tinham sido utilizados no 11 de Março pelos spinolistas como ponta de lança do
seu ataque contra a esquerda militar. Tinham sido manipulados e manobrados com
informações de que havia guerrilheiros latino-americanos e grupos armados de
extrema esquerda dentro do quartel a preparar uma grande operação de
assassinato de centenas de pessoas de direita. E depois, quando perceberam que
na verdade tinham sido ali apanhados no meio de um enredo que não controlavam,
acabaram por parar de disparar. A 7 de novembro, e aqui é que é o momento
crucial desta cronologia, o Conselho da Revolução decide destruir o emissor da
Rádio Renascença, que estava ocupada pela Comissão de Trabalhadores. Havia ali
um conflito com o Patriarcado de Lisboa, que era o proprietário da rádio — e o
governo de Vasco Gonçalves, na verdade, já tinha decidido devolver a rádio aos
seus proprietários com a oposição de Otelo —, e houve ali uma série de
movimentações. O sexto governo provisório de Pinheiro de Azevedo, um governo já
mais conservador, mais virado à direita, tinha basicamente chegado à conclusão
que não era possível retomar as instalações sem que houvesse confrontos. Sem
saberem, os paraquedistas foram usados pelo Conselho da Revolução para
destruir, à bomba, o emissor da Rádio Renascença. Isto provoca uma enorme
revolta entre os paraquedistas, sobretudo entre os praças e os sargentos, que
vão dinamizar um processo de contestação dentro do corpo de paraquedistas, e
sobretudo na base de Tancos, que vai levar ao afastamento de 123 oficiais. O
chefe de Estado-Maior da Força Aérea decide dissolver a unidade e em resposta
os paraquedistas primeiro colocam-se sob o comando do comandante do Copecon,
Otelo Saraiva de Carvalho, que aceita ficar com a autoridade e depois os
sargentos organizam a unidade. Mesmo sem os oficiais, os paraquedistas
continuam a ser uma tropa de excelência, uma força especial, altamente
preparada. E é isso que acontece na madrugada do dia 25 de novembro.
Portanto,
não estamos a falar de uma tentativa de golpe para tomar o poder. É apenas um
protesto dentro das próprias forças armadas.
Neste
caso concreto, nessa madrugada, este protesto, se é que podemos chamá-lo assim,
nunca teve o objetivo de executar um golpe. Basta olhar para o desenrolar das
operações para, acho eu, encontrar uma resposta a essa pergunta. Depois de
tomadas várias bases, os revoltosos ficam na expectativa e começam a emitir
comunicados com as suas reivindicações. E quais são as suas reivindicações?
Bom, que se bloqueie qualquer processo de dissolução dos paraquedistas, o
afastamento imediato do Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, que é
responsabilizado pelo que aconteceu na Rádio Renascença e por toda a escalada,
no fundo, de confrontação com os paraquedistas, a substituição dos
representantes da Força Aérea no Conselho da Revolução e o cancelamento do
afastamento do Otelo Saraiva de Carvalho da região militar de Lisboa. E é aí,
neste último ponto, que o protesto dos paraquedistas extravasa o âmbito do seu
próprio conflito.
Podemos,
portanto, afirmar que já havia um plano em marcha para um golpe
contra-revolucionário e que estas circunstâncias foram utilizadas para executar
esse plano?
Eu
acho que houve várias movimentações nesse dia de diferentes facções
politico-militares, cada uma com a sua agenda própria, de um lado e de outro.
Do lado dos sublevados, o que se nota é um grande grau de improvisação e de
reação a uma situação de fato. Do lado das forças da ordem, vamos chamá-las
assim, há um plano longamente amadurecido, uma avaliação muito cautelosa da
constituição de forças, uma preparação logística. Há uma frase antiga que diz
que os amadores discutem tática, os profissionais discutem logística. Todos os
meios aéreos estavam em Cortegaça, com gasolina, com mísseis e as munições,
tudo preparado para sair, os comandos estavam também equipados para sair,
enquanto que do lado dos revoltosos, tirando os paraquedistas, que de facto
fazem aquilo com muita eficiência, todos os outros estão simplesmente a correr
atrás da situação. E portanto, desse ponto de vista, nota-se claramente que a
preparação está toda de um lado, quase toda de um lado.
Depois,
nas diferentes agendas políticas, o Grupo dos Nove, o que pretende é clarificar
de uma vez por todas a situação no plano político-militar, ou seja, deixar de
haver contestação à hierarquia e a hierarquia ser aquilo que eles definirão.
Vasco de Lourenço passa a ser governador da região militar de Lisboa, Otelo é
afastado, os oficiais da esquerda militar perdem as posições de comando,
tirando na Armada, mas há uma nova correlação de forças absolutamente
inequívoca sobre quem é que manda nos militares. Portanto, daqui para a frente,
qualquer nova manifestação, qualquer protesto radical, no fundo, transgressivo,
vai ter uma resposta musculada.
Os
Nove não querem reverter as nacionalizações. Por isso é que logo no dia 26 o
Melo Antunes vem dizer que o PCP é fundamental para a construção do socialismo,
que estão agora criadas as condições para a via democrática para o socialismo.
Costa Gomes diz isto, o Pinheiro de Azevedo, primeiro-ministro, diz isto. Sem a
esquerda militar, o Grupo dos Nove passa a estar isolado e a direita militar
começa a vir acima. “Ainda não estamos satisfeitos”, diz Jaime Neves. Qual é a
agenda? Para além de reverter boa parte das conquistas da revolução, mão dura,
ilegalizar o PCP, isso parece claro, ilegalizar ou pelo menos dar um grande
chimbalau aos sindicatos, à intersindical, à extrema-esquerda, tudo o que está
à esquerda do PS é para levar e não é para levar pouco.
Outro
dos mitos é falar-se do 25 de Novembro como a data que inaugura a
democratização do país e rutura com modelos “totalitários”, mas a partir desse
dia desencadeia-se um processo de saneamentos contra militares e jornalistas,
entre outros.
Houve
cento e tal jornalistas que foram saneados de muitos órgãos de comunicação
social. Acho que essa é a grande questão. Passou a haver controlo sobre a
narrativa, sobre os aparelhos ideológicos. Eu acho curioso que se projete sobre
o 25 de Novembro a data de início da democracia porque nós olhamos para o 25 de
Abril e o que vemos é centenas de pessoas na rua, milhares de pessoas a fazer a
festa, os profissionais da comunicação social, os jornais todos a sair, “este
número não foi visado pela censura”, temos horas e horas e horas de filmagem,
montes de relatos, etc. O que é que temos no 25 de Novembro? Primeiro o estado
de emergência e depois o estado de sítio. O estado de sítio permite aos
militares ter controlo sobre tudo.
E
o que é este controlo sobre tudo? Não há jornais. Os primeiros jornais saíram
já em dezembro. Durante mais de uma semana, a única fonte de informação legal
são os comunicados da Presidência da República e do Estado-Maior das Forças
Armadas. Há o total controle sobre a informação. Não pode haver manifestações,
não pode haver ajuntamentos, reuniões políticas só com autorização militar, na
prática não há. Há o total controle sobre a narrativa. E, no meio disto tudo,
saneamentos. O Diário de Notícias só voltou já na última semana de dezembro. E
que tipo de saneamento é? É o saneamento à esquerda, evidentemente. Eu acho
curioso que se celebre como verdadeira data da instituição da democracia uma
semana de estado de sítio em que há censura. Já depois, em janeiro, há dezenas
de militares presos em Custóias, completamente incomunicáveis, não podem falar
com ninguém, não há advogado, não há nada. Estão a ser submetidos a
interrogatórios. O relatório oficial do 25 de Novembro é feito por uma
organização que tem acesso a estes prisioneiros sem qualquer tipo de advogado
presente e que os submete a constantes interrogatórios. Militares que passam
fome, militares de Abril, a quem nós de facto devemos a nossa liberdade, são
privados da liberdade, sujeitos a condições humilhantes, degradantes.
Também
há o mito de que o 25 de Novembro veio acabar com a violência.
As
redes bombistas de extrema direita continuaram ativas, sim. E só não
continuaram mais ativas porque a Polícia Judiciária do Porto, muitas vezes em
clara e manifesta oposição ao governador da região militar do norte e às
autoridades civis e militares, investigou e, à altura, prendeu uma série de
operacionais, e quando o fez, esses operacionais do MDLP, do ELP, bombistas,
assassinos, terroristas, colocaram bombas em vários sítios, colocaram bombas à
porta do Centro de Trabalho Vitória, colocaram bombas na Embaixada de Cuba,
provocando, aliás, duas mortes. Em casa de um operário sindicalista, ali no
norte, onde morreu a sua mulher, o atentado aconteceu a mando de um industrial.
Essa rede bombista atua com total impunidade, ao longo da segunda metade de 75 e
de boa parte de 76, grosso modo até o outono de 76.
Houve
envolvimento estrangeiro no 25 de Novembro?
Aparentemente
não. Houve uma promessa dos britânicos, isso Mário Soares confirmou, de que o
primeiro-ministro James Callaghan prometeu apoio tanto de informações através
do MI5 como gasolina, armamento, munições, dinheiro. Houve, claro, bastante
dinheiro a circular, seguramente, através dos sindicatos controlados pela CIA,
das fundações da social-democracia alemã, e algum desse dinheiro deve ter
chegado também a militares. Sabemos que Carlucci [embaixador norte-americano]
estava muito bem informado. Há uma série de documentos, telegramas enviados
pela Embaixada para o Departamento de Estado, alguns dos quais estão compilados
num volume publicado, mas nem tudo lá foi parar. Logo no início de setembro,
mandou um telegrama para Washington a dizer que o Grupo dos Nove estava a
preparar um golpe militar: caso não ganhem em Tancos, vão avançar militarmente
a partir do norte. O que sabemos é que, de facto, Carlucci estava muito bem
informado. Há 34 telegramas enviados por Carlucci entre 25 e 26 de Novembro,
todos chamados Situation Report, todos intitulados Paratrooper Mutiny. Ele
nunca se refere ao que acontece como um golpe. Nunca. E está sempre a sublinhar
que o PCP parece não estar envolvido. Aparentemente, são só os paraquedistas.
Depois começa a dizer que, de facto, as outras unidades estão mobilizadas, mas
não os vê sair. Portanto, não parece haver um assalto ao poder, não parece
haver um golpe.
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