Havia na aldeia uma figura carismática e incontornável, cujo nome era Agripino, mas a quem chamavam o “Depende”. A tudo que se lhe perguntasse, respondia invariavelmente: depende!
Quando alguém lhe perguntava:
- Ó Gripino! Quers ubas?
- Depende. São brancas ou pretas?
- São pretas.
- Oh...se fossem brancas no nas qu´ria, mas c´mo são pretas, quero.
Mais adiante...
- Ó Gripino! Quers ubas?
- Depende. São pretas ou brancas?
- São brancas.
- Oh... se fossem pretas no nas qu´ria, mas c´mo são brancas, quero.
E era assim em relação a tudo: aos figos, às uvas, às maçãs – se eram
verdes ou “ bormelhas “ – às cerejas, se eram brancas ou “ bormelhas”, aos
pêssegos, se eram de “ ´scatcha “ ou de rilhar, ao pão, se era trigo ou
centeio, se era duro ou mole, enfim...um poço sem fundo de manual de
sobrevivência! A tudo respondia como mais lhe convinha.
Um dia a tia Mercês encontrou um queijo de ovelha esquecido numa talha de
azeite, há mais de três anos e mais duro do que os cornos. Nem o marido, o ti
Humberto, conseguiu parti-lo com a faca de matar o porco.
- Ó Gripino! Quers queijo? – Perguntou-lhe a tia Mercês.
- Depende. É de cabra ou d´obelha?
- É d´obelha.
- S´é d´obelha, quero. Só de acaso fosse de cabra no no qu´ria.
Bem tentou ferrar-lhe os dentes, mas nada conseguiu. Lembrou-se e levou-o
ao Pata Larga. Este Pata Larga, que um dia apareceu aos trambolhões na aldeia,
tinha mais força maxilar do que uma hiena. Conseguia partir arame da vinha com
os dentes! Com alguma facilidade, conseguiu parti-lo em nacos que o Depende
rilhou e comeu com prazer durante três dias!
Depende vivia sem família, no campo, num casebre emprestado no meio de um
amendoal do senhor Figueiredo. Era um rapaz alto e magro – aquilo a que se
poderia chamar de “pele e ossos “. Tinha os braços e as pernas compridas,
andando devagar, arrastando os pés descalços com esforço. Caminhava de cabeça
acentuadamente inclinada para a frente e com os braços descaídos, suspensos ao
longo do corpo. Uma baba líquida escorria-lhe da boca, que ele limpava com as
costas da mão ou com a manga da camisa de estopa. Andava invariavelmente
descalço – Verão e Inverno – e roto, com uns farrapos remendados e sebentos, a
cobrir-lhe o corpo magro e presos por cordéis. Era franzino, de pele escura –
talvez alguma reminiscência árabe, do tempo das invasões. Por efeito de uma
doença tinha-lhe caído o cabelo, salvando-se apenas uns fios ralos e fracos qua
lhe pendiam do queixo retraído.
A Mãe, doente mental, atirara-se a um poço nas Veias e o Pai, com o
desgosto, fugiu para o Brasil. Nunca ao filho e a ninguém, dera sinais da sua
existência. Depende, ficou assim, órfão de Pai e Mãe aos quinze anos. Nos
primeiros meses bebia diariamente e tinha comportamentos agressivos para com
todos e o péssimo hábito de roubar fruta em todo o lado por onde passasse.
Porém, perdeu-o no dia em que lhe passaram a zunir perto das orelhas umas
pedradas na vinha do “Queira Deus, queira “, quando roubava malápias. Passava
os dias pelos canelhos da aldeia a rir e a cantar ou então, pelos campos aos
pássaros, munido de uma fisga. Tinha o olhar de um cão faminto e escorraçado.
Varava as noites a uivar e a soltar grunhidos misturados com gargalhadas
estridentes.
Principalmente nas noites claras de Verão, cantava pungentemente versos que
inventava. Eram quadras que rimavam e que repetia sempre nas noites de maior
sofrimento.
- Caratchos! Inté é pena num haber ninguém que ´screba o qu´ele diz. E olha
qu´ele num é tolo ninhum! – Lamentava-se a Maria da Glória.
– Ó Justino! Tu é que podias fazer isso!
- Eu?! Mal sei ´screber o meu nome, canto mais! Aqui o
"pressinhas" é que podia, que ´screbe bem e depressa.
- Pois sim – disse o Belarmino. - Até qu´era boa ideia. Bou andar cum papel e
caneta e tantar ´screber o qu´ele diz.
Dito e feito. O Belarmino passou a prestar atenção e a escrever o que Depende
recitava ao mundo, em noites de lua cheia:
“Minha Mãe já no ´stá cá
Deitou-se a um poço afogar
Atcho que foi por bias de mim,
Que já no me podia aturar.
O meu Pai foi pró Brasil.
E nunca nem sequer ´screbeu
Deixou cá um tchapéu belho
Qu´eu uso e agora é meu.
Qando bou ó cemitério ber
A campa da minha Mãe
Tanho tantas saudades dela
Que só m´apetece morrer tamãe.
Passo as noutes a uibar
À lua, qu´ é tão matreira
Gosto qando alguém me tchama
Pra m´aquecer na lareira.
Ando sozinho no mundo
Ninguém quer saber de mim
Só gostaba de ser bruxo
Prá dibinhar o meu fim.
Bibo só e triste num casebre
Qu´é do senhor Figueiredo
São tantos os barulhos de noute
Qu´às bezes inté tanho medo.
Só queria que parasse
Esta zoeira na mnha cabeça
Peço sempre à minha Mãe
Pra qum dia m´apareça.
Sem entrarmos numa apreciação de psicanálise, nota-se um sentimento de
culpa por tudo o que aconteceu. Se ele fosse bom de aturar, a Mãe não se teria
afogado e, consequentemente, o Pai não teria ido para a o Brasil e ele não
estaria, agora, na situação de abandono. Até chega a pedir à Mãe que um dia lhe
apareça – talvez para lhe pedir desculpas e acabar com aquela “zoeira” na sua
cabeça. Mas também se nota uma certa preocupação com o seu futuro, pois gostava
até de ser bruxo para o adivinhar.
As noites geladas de Inverno passava-as onde caía com a bebedeira que era
de tal ordem que a geada não pegava à volta do corpo. O surro e a crosta da
lama seca, em sucessivas camadas, era já tão espessa que lhe serviam de sola
dos sapatos e o protegia do frio! Com o tempo foi ficando mais calmo e apenas
soltava gritos e balbuciava palavras ininteligíveis. O álcool e a sífilis
roíam-lhe a vida. Inexplicavelmente, embora continuasse a ser antissocial,
ficou humano e até, de quando em vez, assistia à missa! Durante as crises
apenas cantava e ria.... Ria muito, soltando sibilantes gargalhadas, que se
espalhavam sonoras pelos morros.
Todo esse milagre se deve - e ninguém na aldeia desconfiava – unicamente à
Cesária “Tola “. Cesária, conhecida pela “Tola “, era uma mulher alta e forte
de ancas, cabelos ruivos e espessos e seios fartos, desprezada por todos e
procurada pela maioria dos homens, excetuando os que preferiam a “biúba das
eiras “que os atendia em casa, ao passo que a “Tola” os aliviava no campo,
atrás de uma parede, debaixo de uma oliveira ou nalgum palheiro. Uma noite de
Verão, de lua cheia, que derramava doce e tranquilamente sobre a terra uma luz
branca de leite e de paz, Agripino andava aos urros nos lameiros para os lados
da Sesmo, apareceu-lhe de surpresa a “Tola “. Fazendo uma voz suave e
melodiosa, perguntou-lhe:
- Atão, Gripino! O qu´é que t´artormenta?
- Oh.... Tudo. Respondeu rendido àquela figura nítida e real, debaixo
daquele luaceiro taciturno.
- Tudo, o quê? - Oh... a bida, a m´nha Mãe morta ´standida no lançol, o
tempo que num passa e estas cousas todas dentro da m´nha cabeça, que num param
de me martelar o juízo – disse pressionando a cabeça com ambas as mãos.
- Que cousas? – Insistiu.
- Oh! Cousas do mafarrico que m´atormentam dia e noute... – Disse
encolhendo os ombros.
- Mas tães que me decer que cousas são essas pra t´ajudar.
- Ajudar?! – Perguntou franzindo o sobrolho, como que desconfiado que
aquela palavra fosse totalmente inútil.
- Sim, ajudar – respondeu-lhe calmamente, com doçura.
– Alembras-te do Ti Claudino?
- Ou, ou...esse ind´era mais pior do ca mim! Mas...- disse franzindo o
sobrolho e pondo o indicador direito nos lábios.
– Ess´agora já ´stá bô!!!
- Pois ´stá. E sabes graças a quem? A mim. Fui eu qui o curei
– Disse orgulhosa dando duas palmadas no peito – Fui eu – repetiu.
– Só que ningém no sabe!
- Num acredito.... Foi bomecê qui o curou?!
- Sim senhoras. Olarilas...e a ti tamãe te posso curar – disse sorrindo.
- Hum...
- Posso, pois. É só tu qu´reres. Tu queres ser tratado e tirar todos os
demónios que t´afligem?
Cesária tinha o dom de um exímio psicólogo ou psiquiatra. Compreendia e
trabalhava a mente humana com cumplicidade de mestra.
Os olhos de Agripino cresceram e olhavam agora desamparados o chão que parecia
fugir-lhe debaixo dos pés. Como se lhe tivessem faltado as forças nas pernas,
dobrou-as e sentou-se numa pequena fraga. Os freixos e os pinheiros altos e
esguios estendiam-se pela encosta abaixo e pareciam humanos de mãos erguidas
para o Céu, pedindo clemência a Deus. O calor do estio enchia a noite de uma
ternura vaga e morna. Dos lameiros vinha um lento murmúrio de ralos e de grilos
que chegavam ao Depende como uma melodia triste. Do silêncio da noite vinha o
pio pungente dos mochos e das corujas, que se juntavam ao agradável som dos
grilos e dos besouros. As rãs e os sapos coaxavam em lagos de águas paradas,
cobertos de limo. Dois gaios desentenderam-se e rasgaram o silêncio com
guinchos irritantes, perseguindo-se de freixo em freixo. (Alguma zanga por
ciúmes). Tudo parecia mágico: a luz, os sons e até as sensações pareciam
pertencer ao fantasmagórico. Perante a indesmentível e natural força da
Natureza, o ser humano é tão frágil, que é absurdo a arrogância e a bazófia do
ser humano perante ela!
Cesária aproximou-se lentamente e afagou-lhe a cabeça.
- É só qu´reres. Só de caso quiseres eu curo-te.
- Mas atcha que posso ficar bô? – Perguntou sem levantar os olhos do chão,
rabiscando a terra com um pauzito seco.
- To garanto à fé de quem sou – disse convictamente. – Atão tu no bês o Ti
Claudino c´mo era e c´mo é?
- No sei. Tanho que pensar. Eu bem que gostaba de ser c´malguns de bocês,
mas tanho medo...Sabe? u´eu tamãe gosto um catchinho de ser assim e inté tanho
pena dalguns de bocês.
- Mas esses de que tães pena tamãe num são munto normais. Eu fazia-t´assim,
c´mós milhores d´aldeia, por inzemplo, cmó Senhor Olibeira, cmó Senhor
Figueiredo, c´mó Ti Bragança, cmó Dr. Malheiros e cmo oitros mais normais.
Queres?
- Num sei...Gostaba de ser c´malguns, mas tamãe gosto de ser assim, libre e
d´andar por onde quiser.
- Disse com um pequeno brilho nos olhos.
- Pois sim, mas podes continuar a ser cmo agora. Mas diz-me lá: de certeza
que gostas de ser enxotado de todos os lados e andares ós mandiletes de todos?
- Não, isso não. No gosto nada de ser ´scorraçado. Isso magoa-me munto,
mas...cmé que me bai ajudar?
- Antes de tudo: quers ou não quers? Eu ajudo-te, mas tamãe preciso que tu
ajudes tamãe. Quers?
- ´Stá bem. Prontos, quero – disse conformado, encolhendo os ombros,
resignado.
- Atão anda cá – disse chegando-se a ele e mostrando-lhe um seio branco
como o luar, redondo e cheio. – Mamá´qui. Bem cá e tchutcha aqui na teta.
Agripino aproximou-se cauteloso e começou a chuchar no bico entumescido da
mama que se lhe oferecia límpida e gratuita como uma rosa para ser cheirada.
Sugou a mama e depois a outra, com uma sofreguidão progressiva. Uma nuvem de
bem-estar invadiu-lhe o sangue que começou a aquecer. A “Tola” subiu as saias e
baixou as calças ao “Depende “. Deitou-se no chão duro e áspero de pedras, no
meio de giestas e mostrou-lhe o caminho da felicidade. Agripino passou para o
outro mundo e arfava de prazer.
Dir-se-ia que ultrapassara todos os níveis mentais dos humanos e alcançara
o “nirvana “ , esse estado eterno de graça e de superação, esse lugar especial,
onde só os sentidos contam. Agripino desconhecia por completo aquela sensação
de felicidade e flutuava no espaço sideral como as bolhas de sabão que fazia
quando criança.
Cesária usava com mestria todos os poderes e truques ao seu alcance aliás, como
fazem todos os profissionais da matreireice.
Perante a descarada criação de “cargos públicos “ à medida e pagos por nós,
que só servem para que os mesmos se mantenham no poder, com altos e obscenos
rendimentos, temos que compreender e aceitar as diversas Cesárias que tentam
sobreviver por esse mundo fora. No mínimo, temos que ter compaixão. Pode ser
através do sorriso hipócrita e cínico, mas sem maldade, do empregado do pequeno
restaurante ou da loja de bairro. Compram, ou vendem a sua própria
sobrevivência, que é a essência do ser humano.
A lua derramava doce e tranquilamente o seu brilho metálico, numa paz
celestial.
- Gostastes? – Perguntou-lhe com voz melífica.
- Atcho que sim. Indé milhor do que comer cereijas brancas.
- Cereijas brancas? – Perguntou num riso espontâneo.
Ali sentados, numas pedras soltas, no meio da noite e da Natureza, Agripino
descobria os segredos e os prazeres mais profundos do mundo e da carne.
Do que precisamos, na maioria das vezes, é de alguém que nos dê a mão e nos
leve para casa; que nos aqueça as mãos quando está frio; que nos dê esperanças quando
nos julgamos perdidos. Que transforme as nossas descrenças em fé, as nossas
angústias e desilusões em sol e Primavera; alguém que nos dê forças para
acreditarmos no nosso caminho e encararmos o futuro com um sorriso nos lábios,
todos os dissabores da vida. Alguém que acredite em nós e que nos faça
acreditar ser possível atingir a eternidade e a leveza do Bem.
Nos três dias seguintes encontraram-se à mesma hora e no mesmo sítio,
repetindo o acto libertador da carne e da mente. Agripino ficou curado do mal
dos urros e passava os dias sem fazer nada, a pedir comida. Nunca mais uivou,
para espanto de todos e ninguém soube do “milagre “).
(Conto extraído e adaptado do romance " Por entre a solidão das fragas”).
Fontes de Carvalho
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Fontes de Carvalho, pseudónimo de Luís Abel Carvalho, nasceu no Larinho,
uma aldeia transmontana do Concelho de Torre de Moncorvo, Distrito de Bragança.
É o filho do meio de três irmãos.
Estudou em Moncorvo, Bragança e no Porto, onde se formou em Engenharia
Geotécnia. É casado e Pai de três filhos.
Viveu no Brasil, onde passou por momentos dolorosos e de terror, a nível
económico e psicológico. Chegou a viver das vendas de artesanto nas ruas e a
dormir debaixo de Viadutos.
No ano de 1980 e 1981 foi professor de Matemática em Angola, na Província
de Kwanza Sul, em Wuaku-Kungo. Aí aprendeu a desmistificar certos mitos e viveu
uma realidade muito diferente da propagandeada.
Em Portugal deu aulas de Matemática em diversas cidades, nomeadamente em
São Pedro da Cova, Ponte de Lima, Cascais (na Escola de Alcabideche, onde deu
aulas aos presos da cadeia do Linhó), Alcácer do Sal, Escola Francisco Arruda e
Luís de Gusmão, em Lisboa. Frequentou durante quatro anos, como
trabalhador-estudante, o curso de Engenharia Rural, no Instituto Superior de
Agronomia.
Em 1995 fundou a empresa Bioprimática – Reciclagem de Consumíveis de
Informática, onde trabalha até hoje como sócio-gerente.
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