Deu brado, a declaração de Marcelo
Rebelo de Sousa (MRS) de que vetaria uma Lei de Bases da Saúde, mesmo sem a
ler, se fosse apenas votada à esquerda.
Esta estapafúrdia declaração vinda de um
professor universitário apenas espantará quem acha que MRS é uma pessoa
preocupada com a substância dos problemas. Mas para ele, a saúde dos
portugueses é um pormenor; o que é essencial é saber quem ganha no jogo esquerda-direita
(a direita, na sua opinião, deve ganhar). Aliás, numa recente entrevista à agência Lusa,
MRS separou os "mundos" existentes no actual debate sobre a Lei de
Bases a partir de uma igualmente simplista e redutora. Disse ele:
Há
“duas maneiras de ver o problema” no SNS: com “flexibilidade na forma como é
gerido” ou de “maneira mais fixista”.
Pode parecer chocante, mas esta visão
curta dos problemas não é de agora, nem é novidade em MRS. Há cerca de 40 anos,
em 1979, quando o SNS foi aprovado no Parlamento como forma de dar mais saúde
aos portugueses, MRS era director-adjunto do principal jornal nacional (Expresso).
E, mais uma vez, o assunto passou-lhe ao lado.
Folheie-se o jornal dessa altura. A
página 2 do semanário era sempre sua, para estender a sua "Análise
Política". Na página 3, aparecia sempre a "Figura da Semana",
escolhida geralmente por MRS.
Ao longo de 1979, MRS não gastou uma
linha - uma que fosse! - sobre o SNS ou a saúde dos portugueses. O próprio
corpo do jornal nunca abordou o assunto, à excepção da crónica parlamentar, que
não era da sua autoria. E muitas das vezes o SNS foi completamente secundarizado
face a outros assuntos.
E se não foi sobre a saúde, sobre o que
escreveu MRS nesse primeiro semestre preparatório da votação no Parlamento do
SNS?
escreveu sobre a descolonização, o PCP,
o PSD, o Governo de Mota Pinto, a crise política, os candidatos presidenciais,
a descolonização (outra vez!), o regresso de António Champalimaud, a Europa, o
PS, o Brasil, novamente o Brasil (Marcelo deve ter ido ao Brasil e refere-se
à chamada revolução de 1964 sem nunca mencionar o golpe militar), o
congresso do PS (omitindo António Arnaut, que protagonizou - segundo o repórter
do próprio jornal - a segunda intervenção mais ovacionada!), os três anos da
Constituição, a crise da direita (dividida e com MRS a forçar uma concertação
de esforços), a crise da direita nas confederações patronais e na UGT ("a
CAP atravessa crise visível e parece paralisada, dividida; a UGT ressente-se da
divisão no PSD, atrofia-se à nascença; a CIP permanece em debate constante das
suas diversas correntes"), a amnistia aos militares do 11 de Março e do 25
de Novembro, o discurso de Ramalho Eanes no 25 de Abril, as jogadas de Sá
Carneiro, a crise entre Sá Carneiro e Eanes, a "frente eleitoral"
(escolhendo Freitas do Amaral para figura da semana).
Na semana de Junho em que os deputados
votaram o SNS, Marcelo escreveu sobre... o 13 de Maio em Fátima. "A
Igreja Católica é uma força social indesmentível, (...) resta saber se tem
consciência da situação actual do repto que se encontra lançado". Não
lembra ao diabo.
Em Julho, com a criação da Aliança
Democrática (entre PSD/CDS/PPM), MRS parece feliz: "Este acordo
pode ajudar a clarificar as opções eleitorais dos portugueses (...) nada mais
frustrante para o eleitorado do que concluir que o seu voto não escolhe o
Governo. (...) Se o bloco não se desunir, a maioria governamental pós-eleitoral
será provavelmente diferente da actual".
Mas a questão da Saúde em Portugal era
então assim tão irrelevante? Visivelmente para MRS, sim. Mas para os
portugueses, era crucial. Era mesmo um caso de vida ou de morte. Em cada dia.
MRS podia, como fez António Arnaut ou o
deputado da UDP Acácio Barreiros no debate sobre
o SNS (17/5/1979) - que se aconselha ler na íntegra! - alinhar
os sinais do descalabro: Taxa de mortalidade infantil, 35 por 1000 nados-vivos;
Partos sem assistência -15%; Taxa de mortalidade por doenças
infecto-contagiosas, parasitárias e entéricas - 22 por 100000; Casas sem esgoto
- 40 %; População com abastecimento de água através de poços - 32%; População
sem recolha de lixos urbanos - 61 %; Médicos de clínica geral - 92,5 % no
litoral do País, contra 7,5 % no interior; Médicos especialistas - 93,7 % na
região litoral (81 % só em Lisboa, Porto e Coimbra), contra 6,3 % no interior;
Enfermeiros - 83,8 % no litoral e 16,2 % no resto do País; Consumo de
medicamentos (1976) - 80% para o litoral e 20 % para o interior.
MRS podia ter se ofendido e cruzado
armas com António Arnaut quando, nessa sessão do Parlamento, citou o panorama
desgraçado do povo português e a indiferença dos privilegiados:
É
esta pungente realidade que os inimigos do SNS fingem ignorar, por cobardia
moral e indiferença política. Todo os dias os jornais se fazem eco de casos
dramáticos, verdadeiramente intoleráveis numa sociedade civilizada e
inadmissíveis para qualquer pessoa minimamente sensível ao sofrimento alheio.
MRS que lia jornais por dever de ofício, podia - tal como hoje - pensar antes na vida dos outros. Ser "minimamente sensível ao sofrimento alheio". Podia ter se lembrado do que vira, dias antes, ao ouvir Arnaut citar notícias atrás de notícias:
Pessoas que morrem par falta de recursos
ou de assistência médica, outras que aguardam meses por um exame ou uma cama no
hospital. Há casos insólitos de o aviso para a consulta ou internamento chegar
depois do falecimento do doente! Ainda recentemente a imprensa relatou um caso
de uma mulher de Fornos de Algodres - o próprio presidente da Câmara mo
confirmou - que teve o filho debaixo de uma árvore, porque o hospital, ali ao
lado, estava fechado! Tenho aqui à mão recortes de jornais, recolhidos ao
acaso, que referem situações verdadeiramente «exemplares» e talvez «eventualmente
chocantes» para alguns dos Srs. Deputados:
Septuagenária morre à porta do hospital - recusaram-lhe assistência (Comércio do Porto, de 11 de Março de 1978); Entrar no Banco do S. José é passar a «Porta do Inferno» (A Capital, de 7 de Junho de 1978); De três hospitais para a Mitra, por mais incrível que pareça. Estranha e insólita odisseia de uma sexagenária, que fracturou um braço, relatada pelo Diário de Noticias, que do Hospital de Setúbal passou para o Sanatório de Outão, daqui para S. José, depois os familiares perderam-lhe o rasto e, com o auxílio da Polícia Judiciária, vieram a encontrá-la na Mitra! É esta a «radiografia do nosso desespero» para usar a feliz expressão do Diário Popular, que serviu de título a uma recente reportagem sobre o Hospital de S. José. Vamos deixar que tudo continue na mesma? Vamos permitir que subsista o fosso em cujos águas turvas chafurdam os tubarões, entre os privilegiados da sorte e os deserdados da fortuna, entre os pobres e os ricos, entre a cidade e o campo?
Septuagenária morre à porta do hospital - recusaram-lhe assistência (Comércio do Porto, de 11 de Março de 1978); Entrar no Banco do S. José é passar a «Porta do Inferno» (A Capital, de 7 de Junho de 1978); De três hospitais para a Mitra, por mais incrível que pareça. Estranha e insólita odisseia de uma sexagenária, que fracturou um braço, relatada pelo Diário de Noticias, que do Hospital de Setúbal passou para o Sanatório de Outão, daqui para S. José, depois os familiares perderam-lhe o rasto e, com o auxílio da Polícia Judiciária, vieram a encontrá-la na Mitra! É esta a «radiografia do nosso desespero» para usar a feliz expressão do Diário Popular, que serviu de título a uma recente reportagem sobre o Hospital de S. José. Vamos deixar que tudo continue na mesma? Vamos permitir que subsista o fosso em cujos águas turvas chafurdam os tubarões, entre os privilegiados da sorte e os deserdados da fortuna, entre os pobres e os ricos, entre a cidade e o campo?
MRS podia ter se sentido ferido pelo insulto - de quem vive "em águas turvas" onde "chafurdam os tubarões" - e ter dado a mão ao projecto «A Social-Democracia em Portugal», dos social-democratas independentes como Sérvulo Correia, em que se sublinhava que
"Atingiu-se esta situação porque,
além das referidas carências sócio-políticas gerais, o regime anterior não foi
capaz de estruturar um serviço eficiente e universal de cuidados de saúde,
voltado sobretudo para uma medicina preventiva, e porque no sector da medicina
curativa criou condições, favoráveis ao desenvolvimento de uma actividade
profissional individualista, fundamentalmente ao serviço das camadas
privilegiadas da população, em detrimento de uma medicina institucional
organizada"
MRS podia ter sentido o apelo do
jornalista para o real em bruto traçado por Sérvulo Correia quando afirmou no
Parlamento:
"No meu círculo" de Castelo Branco, "a mortalidade infantil
foi, em 1975. de 41 por mil (...) a mortalidade materna foi, em 1975, de 0,70
por mil (...) os partos sem assistência foram, em 1975, de 16,5 %" (...) Como
explicaria eu essa inacreditável estratégia aos cinco filhos de uma senhora
recentemente falecida, esvaindo-se em sangue por acidente pós-parto, enquanto
transportada, sem o tratamento recomendável, do Hospital de Alpedrinha para o
do Fundão e daqui para o da Covilhã? (...) Como a explicaria eu aos meus
eleitores de Oleiros, mais habituados a não ter do que a ter médico no seu
município? Como explicaria aos meus eleitores da Sertã(...) privados de um
centro de análises clínicas no seu hospital? Como a explicaria aos meus
eleitores da Covilhã(...) obrigados a fazer bichas de madrugada no centro de
saúde e cujo velho hospital não responde às necessidades? Como a explicaria aos
meus eleitores de Idanha-a-Nova (...), em cujo hospital as camas não tinham
ainda há bem pouco tempo colchões decentes? Como a explicaria aos meus
eleitores de Penamacor cuja maternidade não funciona por falta de parteira?
Como a explicaria a todos os meus eleitores do distrito de Castelo Branco cujo
moderno hospital distrital espera há tanto tempo os especialistas de que
necessita para dar pleno rendimento às suas instalações e equipamento?
Nada! Absolutamente nada! Nas suas crónicas, nas páginas do seu jornal, não há nada sobre essa realidade. Tudo lhe passou ao largo, nada move as suas ideias senão a macro-estrutura da política, os jogos palacianos, talvez porque, possivelmente, não era essa a sua realidade. Tal como hoje.
A atitude do MRS era, aliás, geminada à
do PSD. O debate sobre a criação progressiva do SNS começara há um ano com
o II Governo
Constitucional (PS, apoiado pelo CDS), envolvendo todas as classes
na saúde e na sociedade. António Arnaut era o ministro dos Assuntos Sociais e
afirmou taxativamente no Parlamento que o projecto fora torpedeado pelo CDS, ao
provocar a queda do Governo e afundando com ele o projecto do SNS que estava
agendado para ser votado a 12/7/1978. O PS recolocou o SNS no debate
parlamentar, de 19/12/1978.
"Descrevi
então," afirmou Arnaut, "o panorama
angustiante do sector, apontei factos e números, indiquei os vários
modelos-tipo de serviços de saúde, rejeitando tanto o colectivista como o
liberal e convencionado. Esclareci que a saúde é um conceito amplo,
verdadeiramente revolucionário, ligado à concretização dos demais direitos
sociais, por isso que, para além da ausência da doença, visa a obtenção de uma
situação de «bem-estar» físico e social. (...) A direita parlamentar - e os
seus órgãos de propaganda - procuraram apenas lançar a confusão, deturpar os
factos, iludir a realidade. A vocação da direita é denegrir e não construir,
conservar ou recuperar e não inovar (...) A direita tem medo da verdade porque
sempre viveu da mentira. (...) A direita é o passado, com o seu rol infamante
de tropelias, de exploração e opóbrio. A direita é o simulacro das caixas, o
submundo dos grandes hospitais, a chaga das Mitras, a fraude da medicina
comercializada, o formulário das multinacionais..." (Aplausos do
PS, do PCP, da UDP e dos Deputados independentes Brás Pinto, Lopes Cardoso,
Vital Rodrigues e Aires Rodrigues)
Em
Junho de 1979, havia vários projectos no Parlamento. O projecto do PS (assinado
à cabeça por António Arnault e que o PCP, social-democratas independentes e UDP
apoiavam); o projecto do CDS - apenas sobre carreiras médicas e
administrativas... - que seguia de perto as ideias da Ordem dos Médicos,
presidida por António Gentil Martins, defendendo - tal como hoje - um «sistema
de saúde» assente fundamentalmente na contratação entre o Estado e a medicina
privada. O PSD estava contra o SNS e chegou a ter inicialmente um projecto
alternativo (com financiamento público e complementado com um seguro de saúde),
mas não o levou avante. O governo Mota Pinto - que esperava ganhar as eleições
em 1980 - achava que, fosse qual fosse o projecto votado no Parlamento, seria
capaz de o modificar na fase de regulamentação...
Esta temática aparece no meio - no meio!
- de um artigo a 3 colunas na página 3, local habitual da crónica parlamentar
(Expresso, 10/5/1979), da autoria do Pedro d'Anunciação.
O PSD dava piruetas entre projectos
inconciliáveis: "Embora não subscrevamos nenhum daqueles
projectos, quanto a nós qualquer um deles apresenta ideias muito válidas e
estamos convencidos que, na sua análise conjunta, poderá resultar um diploma
realista", disse o ministro dos Assuntos Sociais Pereira Magro
(Expresso, 10/2/1979).
Que ideias válidas eram essas? Nada se
dizia, nem importava. Pouco importavam igualmente as clivagens que o SNS suscitava.
No início de Março de 1979, realizou-se
o 3º Congresso do PS, no Pavilhão dos Desportos em Lisboa.
Foi um congresso de combate contra o
governo Mota Pinto. Arnaut foi - segundo o repórter do Expresso - "a
principal bandeira de identidade da esquerda do partido", em que o SNS
aparecia como referência socialista. "SNS" foi a sigla
gritada entusiasticamente pelos delegados ao congresso e militantes presentes.
Por diversas vezes.
"António Arnaut, num típico
discurso de comício lançou o repto emocional a um partido recuperando ainda
mais os traumatismos de uma experiência governativa marcadamente conservadora" (Expresso, 10/3/1979).
Curioso
frisar que nessa altura - como agora - a questão essencial era a
obrigatoriedade da exclusividade dos profissionais do SNS. O jornalista
estabelece uma ligação do bastonário da Ordem dos Médicos ao PSD, o que leva
Gentil Martins a escrever ao director, a desmenti-lo:..."o projecto do
SNS que defendo só por feliz coincidência poderia ser semelhante a algum dos
projectos apresentados na AR e dos quais me alheio"(carta publicada a
9/6/1979).
Ao
contrário de MRS, que manifestava o seu vazio de ideias, os social-democratas
independentes tinham uma visão crítica do assunto. Defendiam "a criação
de um sistema integrado - o Serviço Nacional de Saúde - que permita e fomente a
socialização dos cuidados médicos em Portugal, garantindo o acesso igualitário
de todos à medicina preventiva, curativa e de reabilitação". Mas
apontavam "gradualmente para a existência paralela e em plano de igual
dignidade das duas soluções" - pública e privada - "com
cobertura apenas parcial dos gastos em caso de recurso à medicina privada".
"A dedicação exclusiva do médico constituiria regime excepcional,
proibindo-se, no entanto, as sobreposições de tempos de serviço e o atendimento
dos mesmos doentes pelos mesmos médicos no sector estadual e no sector privado
e restringindo-se ao máximo as acumulações de serviço no âmbito do sector
estadual".
Mas
nesse capítulo, parte do PS estava - como agora - com a direita:
"Sectores
importantes do PS reagiram com desagrado à falta de maleabilidade de António
Arnaut, o qual teria impedido que o referido projecto fosse aprovado com o voto
favorável dos social-democratas independentes" (Expresso, 16/6/1979). Na semana em que o SNS foi
aprovado no Parlamento, esta referência aparece a meio da crónica parlamentar.
O jornalista escreve: "Diploma extremamente polémico e contestado pela
Ordem dos Médicos, o SNS só será exequível dentro de cinco a dez anos".
O tal debate
sobre os projectos, realizado a 17/5/1979 foi dos mais
esclarecedores.
O PSD já defendia então a "liberdade de escolha do médico", "a melhor articulação possível entre o sector estatal e o sector privado", convictos de que a "presença clara e inequívoca de que a estatização generalizada não é a medida adequada à necessária rendibilidade dos serviços e profissionais de saúde". Era defendido como "imperativo de extrema urgência, a existência ou manutenção de um numerus clausus, dado que o débito anual de técnicos terá de obedecer às reais necessidades e capacidade de absorção do País". Era a forma de manter um mercado médico protegido, independentemente das necessidades do país.
O PSD já defendia então a "liberdade de escolha do médico", "a melhor articulação possível entre o sector estatal e o sector privado", convictos de que a "presença clara e inequívoca de que a estatização generalizada não é a medida adequada à necessária rendibilidade dos serviços e profissionais de saúde". Era defendido como "imperativo de extrema urgência, a existência ou manutenção de um numerus clausus, dado que o débito anual de técnicos terá de obedecer às reais necessidades e capacidade de absorção do País". Era a forma de manter um mercado médico protegido, independentemente das necessidades do país.
Um
dos oradores do PSD chegou a enfatizar m defesa do "mercado": "Considera
o Partido Socialista viável a colectivização da medicina num país que aponta
para uma economia de mercado? (...) não entende o Partido Socialista que
dos termos do artigo 23.º do seu projecto, resulta a introdução de uma forma de
controlo que aponta claramente para formas populistas, ineficazes e
demagógicas? (...) entende ou não o Partido Socialista que o controlo
estatal resulta rigidamente do estipulado nos artigos 31.º, 32.º e seguintes?
(...) considera o Partido Socialista que existe qualquer viabilidade,
eficaz e social, para o sector privado em convergência com o sector estatal,
como preconiza o artigo 52.º do seu projecto? Não será antes a sua progressiva
liquidação, ao contrário do que tem sido afirmado?"
Uma
ideia que foi contestada sibilinamente por António Arnaut no seu discurso final
de debate que enumerou os diversos pontos da proposta da criação do SNS
(participação dos utentes, articulação com o sector privado, estatuto do
pessoal):
"Os
que tanto falam na liberdade de escolha do médico escamoteiam a realidade
actual, pois tal direito está drasticamente limitado por razões económicas e
geográficas, só existindo para os ricos ou para aqueles que vivem em grandes
centros. (...) Traduz-se, afinal, em termos práticos, na liberdade de o médico
escolher ou seleccionar os seus doentes e não de o doente poder consultar o
médico da sua preferência. (...) O Partido Socialista quer a liberdade para
todos, a saúde .para todos! Esse é o verdadeiro sentido da socialização da
Medicina que os males intencionados querem confundir com estatização. (...)
..."Sem tal carreira - que
existe para todos os funcionários públicos - não poderia assegurar-se a
cobertura médica e hospitalar de todo o País. Esta é uma das razões por que são
inadmissíveis os modelos da «medicina convencionada» ou do «Seguro-Saúde» que
manteriam os médicos nos seus consultórios das áreas urbanas, sobretudo dos
grandes centros, em prejuízo da mancha negra do resto do País. No futuro, todos
os profissionais que desejem ingressar no Serviço Nacional de Saúde, terão de
sujeitar-se ao regime de carreira.
Pelo PS, o deputado Gomes Carneiro foi contundente:
"Agora
o que não compreendemos é como é que o PSD vem defender o sector privado, se
existir um serviço público de saúde capaz, real, competentemente apetrechado e
com capacidade técnica suficiente para satisfazer as necessidades das
populações no domínio da saúde. Será que o PSD pretende que seja o Estado a
pagar a medicina privada?"
Quarenta
anos depois está à vista que sim, que o projecto sempre foi esse. E quanto ao
SNS, foi acabando por ser substanciado, desarticulado, sangrado e capturado
pelos diversos serviços privados, em que os responsáveis pelo Estado
"preferem" deixar a apodrecer máquinas e serviços, para serem
"forçados" a recorrer aos servidos privados que os vendem, fixando o
preço que querem, pago pelo Orçamento de Estado e sempre com a pressão de que
as dívidas do sector da Saúde se acumulam, sem serem pagas.
A
ideia era clara, tal como Arnaut a colocou:
O
SNS não impede a existência paralela ou mesmo concorrencial de actividades
privadas no sector da saúde. O que se pretende é garantir à população o acesso
pronto e eficiente aos serviços de saúde do Estado. Trata-se, afinal, de o
Estado cumprir a «obrigação social» a que está adstrito. Por isso, o campo de
actuação da medicina liberal dependerá da maior ou menor eficiência e aceitação
dos serviços públicos. De qualquer modo, o seu papel será relevante. (...)
Admitimos, pois, como resulta do n.º 2 do artigo 15.º, o recurso dos utentes a
entidades ligadas contratualmente ao SNS no caso de impossibilidade de resposta
da rede oficial, e até, excepcionalmente, um reembolso directo. Fora dos casos
previstos naquela norma, admitimos realisticamente o recurso a entidades
privadas que tenham contrato com o SNS, mas o reembolso não poderá representar,
neste caso, acréscimo de despesas para o Estado. Assim se concilia o interesse
dos utentes, salvaguardando, quanto possível, a sua liberdade de escolha, com
os princípios da universalidade e generalidade do SNS. Como disse atrás, a
socialização não é a estatização e o que nos preocupa são os interesses dos
utentes, únicos destinatários do Serviço Nacional de Saúde. É à luz destes
interesses - e não de quaisquer outros - que nos devemos nortear.
Já após a aprovação do SNS, a direita mobilizou-se
para que o debate na especialidade esbatesse as fronteiras entre a prática
pública e a privada. Mas a questão era sempre minimalistamente tratada
pelo Expresso e sempre de forma depreciativa para o
SNS:
A
divisão era entre "os que colocam fronteiras mais vincadas entre a
medicina privada e as estruturas estatizadas do
SNS" (Expresso, 16/6/1979).
Apenas
em Junho, já após a sua aprovação pela Assembleia da República, é que o Expresso aflora
a questão, no meio de um artigo e apenas por causa da possível criação de uma
plataforma política dos socialistas.
"O SNS e alterações recentemente introduzidas na Lei de
Bases da Reforma Agrária têm sido os principais obstáculos à definição de uma
plataforma política - e consequentemente a um projecto de Governo entre o PS e
os social-democratas independentes" (1ª
página, 16/6/1979)
Em
Agosto de 1979, a Ordem dos Médicos organiza uma greve ilegal dos médicos,
em defesa do fim da exclusividade. Segundo o jornal Expresso,
a 23/5/1979, o governo Mota Pinto aprovara o Estatuto do Médico. O governo dera
o projecto a ler ao bastonário da Ordem dos Médicos que sugerira modificações,
nomeadamente "a possibilidade de os médicos poderem acumular empregos que
pretenderem, horários de trabalho individuais, de modo a facilitar acumulações,
incluir todo o tempo de serviço, seja em que regime de trabalho for, para a
contagem para a aposentação". Estas alterações modificaram o documento
original e as páginas não apareceram rubricadas pelo ministro Pereira Magro,
que "não concordara com as alterações". Mota Pinto recebe Gentil
Martins, dois dias antes de abandonar o Governo, e Gentil Martins insiste em
mais umas modificações. Na véspera de sair, novo encontro, desta vez com o chefe
de gabinete, dando conta que apenas duas das reivindicações não tinham sido
acolhidas: indexação salarial automática e classificação numa letra abaixo do
pretendido. De resto, ficavam com um estatuto que mais nenhuma classe tinha,
levando os serviços do MAS a considerar como impossíveis de aplicar (ler mais
no artigo que vem acima na foto). O diploma vai assim para Ramalho Eanes
assinar. E criou problemas. Os médicos hostilizam formas de luta.
E
em Setembro, MRS escolhe Gentil Martins para a figura da semana, tecendo
elogios políticos ao presidente da Ordem dos Médicos, pelas cedências do
governo ao Estatuto do Médico - contra "o sindicato considerado conotado
com o PCP e que há muito contesta a implantação da Aliança Democrática no seio
da ordem dos Médicos" (Expresso, 1/9/1979).
Mas
nunca, nunca mesmo, se menciona o fundo da questão. Não é isso que interessa a
MRS. Nunca foi. A sua vida era outra.
E
hoje?
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