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segunda-feira, 4 de julho de 2016

UMA NOITE DE SÃO JOÃO - Escrito em 1996 mas muito actual.

UMA NOITE DE SÃO JOÃO

Diário de um empresário estrangeiro caído no Porto numa noite de S.João, sem que alguém o tivesse previamente avisado do que ia ver, sentir, cheirar e ouvir.

Querido diário: Hoje de manhã acordei cedo e meti-me no avião mal acabei de comer o pequeno-almoço. Fui a Portugal, uma província de Espanha que fica junto ao Atlântico e que é a região mais pobre da Península Ibérica. O destino foi uma cidade, o Porto - ou Oporto, conforme se lia em uns prospectos que havia no avião - ao que parece é a segunda maior cidade da província. Provinciana é de certeza: o homem do táxi, para além de ter roubado descaradamente - passou três vezes pela mesma rotunda - não sabia falar inglês nem francês, não me abriu a bagageira para pôr as malas, nem me abriu a porta do carro quando saí. Para além disso, em cada semáforo que parávamos vinham-nos pedir dinheiro ou vender pensos rápidos.
Fui ter a um grande pavilhão pré-fabricado onde me disseram que funcionava a associação dos empresários da região e onde me foi muito difícil convencer o porteiro a que me deixasse entrar. Depois  de  muito  discutir  lá  entrei,  para  me  encontrar  com  o  dono  do prédio pré-fabricado ou com o encarregado. Era um engenheiro muito bem posto por quem um doutor em não seio o quê me mandou esperar cinco minutos. Ao fim de meia hora lá me atendeu, mas sempre com ar de quem me queria ver pelas costas, porque, disse-me, tinha ainda que receber uma delegação dos PALOP. Não consegui perceber quem era o PALOP, mas a verdade é que mal o deixei, o vi meter-se num carro com motorista e deixar o prédio pré-fabricado.
Lá tive que telefonar para um táxi e ir fazer o check-in ao hotel. Ficava no meio da cidade e tive dificuldade em entrar porque à porta estava uma senhora velhinha a vender uma infinidade de vazinhos com uma planta verde muito cheirosa e uma quadra em cada um deles. Comprei um para trazer. A quadra dizia uma coisa do género: «Quando saltei a fogueira / Contigo como meu par, / Queimei-me para a vida inteira!... / Mas gostei de me queimar.» Não percebi muito bem, mas a verdade é que a vendedora não me deixou escolher, fez logo má cara mal mexi no terceiro vazinho. Depois entrei no hotel e como só tinha avião no dia seguinte, dormi a tarde toda. Ao fim da tarde, resolvi ir jantar fora. Mal saí á rua, umas oito horas da noite, percebi que os autóctones gostavam da vida da rua: estava tudo cheio de gente, que não se limitava a andar pelos  passeios, enchia também as estradas, por onde deviam andar os carros. Deve ser um costume daqui, porque os condutores dos poucos carros  que passavam não mostravam estar aborrecidos por terem de circular a pouco mais de dez à hora. É concerteza um povo muito amigo uns dos outros, porque na minha terra tinham logo chamado a polícia.
O que me pareceu é que não gostavam de estrangeiros, porque mal saí do hotel, veio uma criancinha e agrediu-me com um martelo na cabeça. Não me magoou porque o martelo era de plástico, mas, nestas coisas, o que conta é a intenção. Ainda tentei falar com o pai da criança, mas pareceu-me que cheirava a vinho e resolvi não criar mais problemas. Mas a coisa não ficou por aqui: enquanto procurava um lugar restaurante sossegado, surgiu-me pela frente um homem com mais de 70 anos que me atirou para a cara com vegetal de grandes dimensões e cheiro intenso. E não se limitou a agredir-me uma vez, ainda se divertiu a passar-me pela cara aquela espécie de repolho, o que me deixou logo enjoado para a noite inteira.
Mais á frente, tentava eu esquecer-me destes tristes incidentes e estando eu á procura de uma autoridade a quem me queixar, veio ter comigo uma moça nova que investiu sobre mim com uma espécie de penacho. Ainda me tentei defender, mas não foi possível fazer nada: a rapariga passou-me aquilo pelo nariz e depois fugiu a rir-se de mim. Para ali fiquei a espirrar, com as pessoas a passar por mim e, em vez de me perguntarem se queria alguma coisa, riam-se a bandeiras despregadas.
Não há dúvida que há povos que são intrinsecamente maus. Por isso, desisti de apresentar queixa às autoridades, até porque me avisaram lá na fábrica que a polícia daqui tem uma maneira muito especial de proceder a interrogatórios.
Mas as surpresas não paravam, quando esperava encontrar um sítio sossegado para jantar, só deparei com barracas montadas às três pancadas onde o magote se juntava em número muito maior que o possível. Depois de esperar um bom bocado, lá me sentei, num banco de madeira, a uma mesa coberta com um oleado cheio de nódoas. Pedi a lista, mas ao fim de muito discutir lá percebi que só havia uma sopa a que chamam verde e  sardinhas, que é um peixe usado nos países desenvolvidos para a alimentação das focas e dos golfinhos. Queria chá para acompanhar, mas o homem em camisola interior que me estava a servir trouxe-me vinho tinto numa malga em louça grosseira. Lá mais para o meio da refeição pedi água, mas o criado trouxe-me outra malga de vinho que, por educação, tive de beber. Estava eu a dissecar o peixe com as mãos - só me tinham trazido um garfo - quando, para meu espanto, se sentaram á minha mesa sete pessoas que não conhecia de lado nenhum. Pude aperceber-me que era uma família, os avós, os pais e os três filhos, dois miúdos jovens e uma rapariga com uns vinte anos. Bem quis passar despercebido, mas não havia nada a fazer: mal acabei a minha segunda malga de vinho, o homem olhou para mim, sorriu, disse-me uma coisa qualquer que eu não percebi e encheu-me o recipiente com o seu vinho. Confesso que comecei a sentir-me mal com o álcool, mas não me passava pela cabeça dizer não a um autóctone, depois das agressões de que já tinha sido alvo. Mal saí, deparei com uma autêntica perseguição a um cidadão que por ali passava. Apesar de bem vestido, a multidão agredia-o violentamente com martelos, repolhos e outros objectos ao mesmo tempo que gritava: Sam-pai-o, Sam-pai-o. Lembrei-me do que tinha lido sobre os autos de fé da inquisição espanhola, mas nunca imaginei que pudesse assistir a um no fim do século XX. O condenado lá evoluía por entre a multidão, gesticulava muito - como se quisesse apelar á cama geral - mas nada conseguia: até o perder de vista, a multidão injuriava-o aos gritos, aproximava-se dele, agredia-o e fugia a rir-se. Degradante.
Mas o mais estranho ainda estava para acontecer, querido diário: tentava eu voltar para o hotel já um bocado aos zigue-zagues por efeito do vinho, quando se abeirou de mim a jovem que tinha jantado comigo, agarrou-me o braço e, como não podia deixar de ser, deu-me com um martelo na cabeça. Olhei em volta para ver se a  família ainda a acompanhava, temendo outras sevícias generalizadas, mas descansei quando percebi que se encontrava sozinha.
Consegui libertar-me dela com algum esforço e encaminhei-me para o hotel que felizmente já não estava longe. O espantoso é que a jovem continuava a perseguir-me e nem mesmo quando entrei no hotel desistiu. Também não era para menos: quando tentei arranjar auxílio junto do porteiro, este abriu-lhe a porta e, sorridente, deixou-a entrar, deu-me uma palmada nas costas e foi-se embora. Tentei refugiar-me no quarto, mas não fui suficientemente rápido: quando quis fechar a porta já ela se encontrava lá dentro e se sentava a descansar depois da implacável perseguição.
Sentia-me mal.  Fui até á janela. Era tarde, mas os autóctones não davam mostras de querer ir para casa. Pelo contrário, a multidão era cada vez maior e mais barulhenta.
Deu-me a volta á cabeça. Deitei-me na cama para  descansar e depois não me lembro de mais  nada.  A  sério,  querido  diário.  Não  fiques  triste. Bom mesmo era  ser  administrador-delegado da nossa empresa nesta província.




20 de Junho de 1996

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