Artigo do escritor Lobo Antunes já não é recente, mas vale a pena reler!
Um Dó Li Tá
"Perguntam-me muitas vezes por que motivo
nunca falo do governo nestas crónicas
e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe
governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram
casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças
lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro.
- Eh pá embora usar um pin? que
representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey.
- Embora
pôr o Rato Mickey? Mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que
convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu.
- Mete-se antes a bandeira como o Obama
e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations virem
da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes,
que engraçado, a mandarem na gente.
- Agora mandamos em vocês durante quatro anos,
está bem? depois de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a sopa
toda e estudam um bocadinho em
lugar de verem os Simpsons. No meio dos meninos há um tio idoso, manifestamente
diminuído, que as famílias dos meninos pediram que levassem com eles, a
fim de não passar o tempo a maçar as pessoas nos bancos, de modo que o
tio idoso, também de pin.
- Ponha que é curtido, tio para ali anda
a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola, que os meninos
acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que mal faz? Isto é
tudo a fazer de conta.
Esta
criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser
criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e
eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco
e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um
Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos
vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos:
Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é
americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim-escola preocupa-me. ASAE
devia andar de olho na venda de espirituosas a menores. Outra coisa que
me preocupa é a ignorância da língua portuguesa nos colégios.
Desconhecem o significado de palavras como irrevogável. Irrevogável até
compreendo, uma coisa torcida, e a gente conhece o amor dos pequerruchos
pelos termos difíceis, coitadinhos, não têm culpa, mas quando, na
Assembleia, um deles declarou.
- Não pretendo esconder nem ocultar
apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado
compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão tenras.
Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura maldade,
que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por
inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem:
temos de levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar
ainda formada, e entender que mudar constantemente de discurso,
desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância, um significado grave. A
irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com o tempo, hão-de
tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o sejam já,
é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los, perdoar-lhes.
Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha do garoto que faz
de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram para as
Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito
exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a obedecer a
uns senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles
para além de empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego,
estrangularem-nos, desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha,
destruírem-nos? São miúdos queridos, cheios de boa vontade, qual o
motivo de os não deixarmos estragar tudo à martelada? Somos demasiado
severos com a infância, enervam-nos os impetuosos que correm no meio das
mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que incomodam os clientes, a
nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há pessoas crescidas a
orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa daqueles que
não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm sido
injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar
argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das
mulheres e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da
República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da
República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos
sobrar algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem
uns com os outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o
problema se há tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito certo
de o não haverem oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que nos
fanaram, isto é, de pin cravado na pele (ao princípio dói um bocadinho,
a seguir passa) encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho,
cheio de ternura, nas testazitas inocentes."
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