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domingo, 8 de março de 2015

Menos mulher

O impacto do crânio no chão é um som seco e fundo. Mas é um som abafado pela perda de consciência. A pancada incisiva e certeira deixa-me sem acordo e perco os sentidos algumas vezes. Outras deixo-me ficar de olhos fechados e finjo-me já ausente. IMG_1
Nem sempre mitigo a sua fúria que só termina quando fico absolutamente imóvel. Quando perco os sentidos, a primeira coisa que sinto, ao acordar, é o cheiro a mim própria. Às minhas fezes e à urina em que jazo, depois, a pouco e pouco, sinto o sabor quente do sangue que me escorre dos lábios, do rosto, até abrir os olhos de vez e ver o tecto ou o canto de um móvel, ou o chão.
Não há limite para a sua fúria. Eu sou toda a sua fúria e ele é toda a minha culpa. Assim que consigo, levanto-me e recomponho-me sem me olhar ao espelho. Fico quieta largos minutos, a testar a força da gravidade. Depois, sim, revejo o baque surdo, a pancada dilacerante e apercebo-me que a dormência abandonou o meu corpo e o meu corpo é todo dor. Volto a ser a Messalina, a puta com quem ele casou e que o trai sempre que vira as costas.
Os nós dos dedos estão rígidos e as mãos inchadas. Não as consigo quase dobrar. Na casa-de-banho dispo-me e abandono-me na água corrente que escoa o meu tempo.
Não tardará a voltar, não tardará a voltar, tenho de arrumar tudo, tudo, tudo como se nada se passassse, não tardarei a ouvir a porta, o trinco a abrir, os seus passos atormentadores, não tardará muito, não tardará mesmo, mesmo nada.
Enxugo as lágrimas com os pulsos hirtos. Apresso-me e olho, finalmente. Não me acertou na cara. Não me acertou na cara. A cara ainda é a minha. O corte do lábio fi-lo eu, recordo, ao morder com força no momento do impacto. As mãos, as minhas mãos foram, ainda, por breves momentos, a concha. Não tardará muito estará de volta, regressará, como sempre, seus passos largos no corredor, suas mãos mortíferas em minhas ancas, não tardará muito, varro os cacos, lavo o chão, ponho a mesa para o jantar outra vez, não tardará muito, desta vez, dir-me-á que a comida estava fria, não proferirei palavra e a comida esfriará ainda mais, pedir-lhe-ei desculpa e erguer-me-ei para a aquecer de novo, à temperatura ideal, mas é tarde, é demasiado tarde e ele já coze em banho maria quando começam as imprecações, depois os gritos, as ofensas e o ódio todo a sair-lhe escarrado na minha face, no meu corpo, até me sorver os músculos faciais e eu saber que já não há retorno e que é já a seguir que como.
Depois mais nada. O baque, o impacto, a queda, às vezes, até os pontapés ou os murros. Ou todos juntos.
Deixa-te estar, deixa-te estar quieta, quietinha, quietinha. Até que passe, até que não tarda está de volta, regressa a ti no perdão de te saber culpada, quietinha, chiu, não te mexas nem um centímetro e morde a dor enquanto pedes que te perdoe, morde a dor toda em silêncio. A dor tão funda como o amor que antes era o nosso.
“Desculpa”, dir-me-ás e logo, logo, eu sei. Amanhã é outro dia.
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8 de março existe, porque ainda há mulheres sem voz.

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