O impacto do crânio no chão é um som seco e fundo. Mas é um som
abafado pela perda de consciência. A pancada incisiva e certeira
deixa-me sem acordo e perco os sentidos algumas vezes. Outras deixo-me
ficar de olhos fechados e finjo-me já ausente.
Nem sempre mitigo a sua fúria que só termina quando fico
absolutamente imóvel. Quando perco os sentidos, a primeira coisa que
sinto, ao acordar, é o cheiro a mim própria. Às minhas fezes e à urina
em que jazo, depois, a pouco e pouco, sinto o sabor quente do sangue que
me escorre dos lábios, do rosto, até abrir os olhos de vez e ver o
tecto ou o canto de um móvel, ou o chão.
Não há limite para a sua fúria. Eu sou toda
a sua fúria e ele é toda a minha culpa. Assim que consigo, levanto-me e
recomponho-me sem me olhar ao espelho. Fico quieta largos minutos, a
testar a força da gravidade. Depois, sim, revejo o baque surdo, a
pancada dilacerante e apercebo-me que a dormência abandonou o meu corpo e
o meu corpo é todo dor. Volto a ser a Messalina, a puta com quem ele
casou e que o trai sempre que vira as costas.
Os nós dos dedos estão rígidos e as mãos inchadas. Não as consigo
quase dobrar. Na casa-de-banho dispo-me e abandono-me na água corrente
que escoa o meu tempo.
Não tardará a voltar, não tardará a voltar, tenho de arrumar tudo,
tudo, tudo como se nada se passassse, não tardarei a ouvir a porta, o
trinco a abrir, os seus passos atormentadores, não tardará muito, não
tardará mesmo, mesmo nada.
Enxugo as lágrimas com os pulsos hirtos. Apresso-me e olho,
finalmente. Não me acertou na cara. Não me acertou na cara. A cara ainda
é a minha. O corte do lábio fi-lo eu, recordo, ao morder com força no
momento do impacto. As mãos, as minhas mãos foram, ainda, por breves
momentos, a concha. Não tardará muito estará de volta, regressará, como
sempre, seus passos largos no corredor, suas mãos mortíferas em minhas
ancas, não tardará muito, varro os cacos, lavo o chão, ponho a mesa para
o jantar outra vez, não tardará muito, desta vez, dir-me-á que a comida
estava fria, não proferirei palavra e a comida esfriará ainda mais,
pedir-lhe-ei desculpa e erguer-me-ei para a aquecer de novo, à
temperatura ideal, mas é tarde, é demasiado tarde e ele já coze em banho
maria quando começam as imprecações, depois os gritos, as ofensas e o
ódio todo a sair-lhe escarrado na minha face, no meu corpo, até me
sorver os músculos faciais e eu saber que já não há retorno e que é já a
seguir que como.
Depois mais nada. O baque, o impacto, a queda, às vezes, até os pontapés ou os murros. Ou todos juntos.
Deixa-te estar, deixa-te estar quieta, quietinha, quietinha. Até que
passe, até que não tarda está de volta, regressa a ti no perdão de te
saber culpada, quietinha, chiu, não te mexas nem um centímetro e morde a
dor enquanto pedes que te perdoe, morde a dor toda em silêncio. A dor
tão funda como o amor que antes era o nosso.
“Desculpa”, dir-me-ás e logo, logo, eu sei. Amanhã é outro dia.
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8 de março existe, porque ainda há mulheres sem voz.
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