A realidade Auschwitz
A administração da morte era rápida, silenciosa e cruel. Não havia
justiça, não havia lei, nem esperança, nem futuro, nem gente a quem
implorar pela vida.
A 27 de Janeiro de 1945, o Exército soviético chegou às instalações
do campo de concentração alemão nazi em Auschwitz. A guerra estava perto
do fim. Ao entrar, os soldados encontraram cerca de sete mil doentes,
aleijados, gente magoada e a morrer num clamor de horror. Nos dias
anteriores, cerca de dez vezes mais prisioneiros, aparentemente capazes
de andar, tinham sido forçados a deixar o campo, empurrados, arrastados,
espancados, amaldiçoados, e a marchar em direcção a Wodzislaw, uma
cidade a cerca de 55 quilómetros a oeste. Iam mal vestidos para o
Inverno polaco, estavam desnutridos ou com fome, muitos não tinham
sapatos. Eles foram os sobreviventes da história mais horrível do século
XX.
Desde Maio de
1940 que esta bizarra "zona de desenvolvimento" tinha sido criada em
redor de um quartel de artilharia abandonado do Exército polaco.
Rapidamente o primeiro acampamento, Auschwitz I, se tornou sobrepovoado
com presos, ou, mais apropriadamente, com pessoas escravizadas, privadas
de identidade, direitos, voz, privacidade e, na verdade, privadas da
sua humanidade.
Os alemães executaram esta operação em
território polaco, provavelmente, devido à localização conveniente, ao
longo dos caminhos-de-ferro vindos de leste e oeste, norte e sul. Não só
encarceraram inimigos políticos do regime, intelectuais de esquerda ou
qualquer suspeito de ser um inimigo, como também pretendiam criar uma
força de trabalho para ser usada mais tarde pela SS através de
disposições individuais. Para além de tudo isto, grandes grupos de
pessoas estavam catalogadas (não condenadas e não havia tribunais) e
condenadas a serem eliminadas.
Em Outubro de 1941, o primeiro
projecto cresceu, com a construção de Auschwitz-Birkenau, que estava
preparado para conter quatro grandes fornos crematórios. Auschwitz era
uma fábrica de morte. As contagens de cabeças provocam imagens
aterrorizantes. A repartição das deportações por países, em números
aproximados, é: Hungria: 426.000; Polónia: 300.000; França: 69.000;
Holanda: 60.000; Grécia: 55.000; Boémia e Morávia: 46.000; Eslováquia:
27.000; Bélgica: 25.000; Jugoslávia: 10.000; Itália: 7500; Noruega: 690;
outros: 34.000.
Entre o final de Abril e o início de Julho de
1944, cerca de 426 mil judeus húngaros foram para Auschwitz. A SS enviou
320.000 deles directamente para as câmaras de gás em
Auschwitz-Birkenau. No total, 1,1 milhão de judeus foram deportados para
Auschwitz. Cerca de 200.000 outros entraram, incluindo 140.000-150.000
polacos não judeus, 23.000 ciganos e Sinti (ciganos), 15.000
prisioneiros de guerra soviéticos e 25.000 outras pessoas (civis
soviéticos, lituanos, checos, franceses, jugoslavos, alemães, austríacos
e italianos). A humanidade dos indivíduos foi reduzida ou posta à
prova.
Uma pessoa descreveu a dialéctica do encontro de dois
grupos de prisioneiros: os recém-chegados arrebanhavam-se de sobretudos
longos a condizer com as malas e os seus escassos bens materiais.
Aqueles que já lá estavam marchavam em fileiras e esquadrões, privados
de qualquer coisa. Havia uma antinomia entre os vestidos e os nus, estes
últimos eram ignóbeis e propensos à violência, sem uma palavra.
Qualquer coisa material, qualquer objecto da vida anterior, mesmo um
tostão, lhes daria uma falsa sensação de segurança, indicando a linha de
demarcação entre aqueles marcados para a eliminação imediata e aqueles
que compravam o sonho de ter talvez uma hipótese.
A administração
da morte era rápida, silenciosa e cruel. Não havia justiça, não havia
lei, nem esperança, nem futuro, nem gente a quem implorar pela vida.
Guardas e soldados alemães e estrangeiros desenvolveram uma forma de
colocar completamente a sua vida privada fora dos arames farpados e
retirá-la das atrocidades quotidianas que eram cometidas. Tentar não
morrer de doenças comuns, enquanto se aguardava a morte na câmara de gás
era uma filosofia de sobrevivência. Crianças que nasciam lá e que não
podiam ser um dos 700 eram mortas. As crianças que iam para o
acampamento eram também mortas, frequentemente por injecção letal.
Relatos
contemporâneos do processo, chamado Holocausto, apontam para o facto de
que a grande escala, o extermínio em massa de grupos étnicos foi um
processo planeado e racionalmente organizado. Zygmunt Bauman sugere que
Auschwitz deu à humanidade a oportunidade de empregar cegueira ética.
Theodore Adorno sugere que o Holocausto foi um trampolim no processo de
administração de energia pura, dominação e alienação das vítimas pelos
agressores. Muitos dos dominadores e abusadores, quando a guerra
terminou, só terão sido capazes de viver vidas quase normais porque
colocaram uma barreira nesse passado e nunca a ultrapassaram – ao
contrário das vítimas sobreviventes que nunca foram capazes de pôr a
vida em ordem e viveram despedaçadas, de personalidade fragmentada e
assombradas pelas recordações.
É por isso que preservar a memória
histórica se tornou uma importante ferramenta educacional e social para
nos certificarmos de que nenhum Holocausto jamais voltará a acontecer. A
27 de Janeiro de 1945, na estrada para Wodzislaw, o meu avô Felix foi
espancado até a morte com as coronhas das armas. Ele estava fraco de
mais para andar. Havia sobrevivido milagrosamente, mas não conseguia
marchar. Quarenta e oito dos seus primos morreram nos crematórios. Fui
criado como filho único, só que pior – eu não tinha tias, tios, primos,
avós, ninguém. Eu não tive Verões passados na casa do meu avô, nem o
luxo de ter a minha avó a ler-me contos de fadas. As memórias dos meus
pais de alguma forma pararam quando a guerra começou, e os relógios só
recomeçaram depois de os soviéticos libertarem os territórios polacos.
Hoje,
na sequência de actos de violência sem sentido contra cidadãos
inocentes, seja no 11/09, em Madrid, Paris ou Londres, temo que a
obsessão com a etnia, a religião ou a limpeza de minorias, o
destacamento de missões assassinas a partir de qualquer característica
étnica da nossa civilização para realização de crimes simbólicos ou
homicídios em massa esteja, infelizmente, mais uma vez na mente das
pessoas; provavelmente nunca deixou de estar. No meu próprio trabalho
sobre fundamentalismos (1992), foquei-me na confusão epistémica, no
facto de que uma ausência de coordenadas cognitivas e normativas torna
possíveis fenómenos como o Holocausto, o terrorismo e todas as outras
formas de violência baseadas no ódio. É por isso que, mais do que nunca,
precisamos de entender bem o mecanismo que permite a separação desumana
entre valores e a sua prática. No 70.º aniversário da libertação do
campo de Auschwitz nós, polacos, nós, europeus, lembramos as
atrocidades, ainda investigamos os mecanismos e tentamos sarar a ferida
do Holocausto. Lembrar não é entender. Nunca entenderemos. Nunca
aceitaremos tais atrocidades profundamente desumanas. Mais do que
ninguém, todos nós trazemos cicatrizes nas nossas recordações,
cicatrizes que resultam da ausência dos nossos avós, tios, primos e
amigos, cicatrizes que resultam da nossa solidão.
Embaixador da República da Polónia em Portugal
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